Desiludido, o sargento-ajudante Miguel Rego escreveu à ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras, a explicar por que pediu o abate aos quadros da Força Aérea depois de 24 anos fardado de azul. A saturação descrita pelo militar na sua carta — reproduzida em abril no jornal “Sargento” — não será estranha a muitos que têm deixado as fileiras. Miguel Rego ingressou como praça em 1999, depois estudou e fez o curso de sargentos, evoluiu, especializou-se nos sistemas do avião de transporte C-295 e saiu seduzido por uma oferta para ganhar o dobro no estrangeiro. “Foi uma empresa civil de outro país que entrou em contacto comigo. Se como 1º cabo ganhava o dobro do ordenado mínimo, como sargento-ajudante nem ao dobro chegava”, escreveu o ex-militar. Ao longo dos anos o salário mínimo nacional disparou, mas o vencimento dos militares estagnou: “Esta empresa simplesmente ofereceu o dobro do meu ordenado atual, com seguros de saúde para mim e a família. Saí do país e fui para instrutor de uma empresa fabricante de aeronaves.”
A “degradação da
condição militar” que o sargento menciona, a má qualidade das instalações e dos
equipamentos, a sobrecarga de trabalho e a falta de perspetivas levou-o a
desistir, como a outros cinco camaradas da mesma esquadra: “E outros tantos
querem sair”, avisa. A sua amargura traduz-se assim: “Senti-me abandonado e
traído pelo Estado, após ter dado 24 anos da minha vida e da minha família”,
porque “adorava a instituição onde entrei, mas não a atual”. Para ele “já não
há volta a dar”, mesmo com as medidas que estão em curso (ver texto ao lado).
MAIS CHEFES DO QUE
SOLDADOS
Do ponto de vista
geral, o Ministério da Defesa Nacional (MDN) refere que faltam apenas 13% dos
militares previstos para o quadro permanente. Mais séria é a necessidade de
recrutar e contratar voluntários, que é onde se regista a maior carência de
pessoal: 45% das vagas previstas na lei para os efetivos contratados estão por
preencher. Em termos absolutos, o Exército é o ramo mais penalizado pela falta
de atratividade das Forças Armadas, dado o volume de recursos humanos de que
precisa: o ramo terrestre tem um terço dos efetivos previstos por preencher e
não parece que esteja em vias de inverter a situação, porque o problema se
acentuou na primeira metade deste ano. No final de 2022 o Exército precisava de
ter mais 5260 militares, mas no fim de julho deste ano o balanço negativo
acentuou-se e o défice aumentou para 5745 homens e mulheres em falta, segundo
dados avançados pelo ramo ao Expresso. Trata-se de uma necessidade acrescida de
mais 485 tropas, um crescimento negativo de 9,2% em apenas sete meses.
A falta de praças
(soldados e cabos), ou seja, de “botas no chão”, é o maior problema dos três
ramos, mas afeta especialmente o Exército. Se compararmos as 4500 praças que
estavam ao serviço no fim de 2022 — segundo dados fornecidos pelo MDN — com o
quadro de efetivos definido por decreto-lei, o ramo terrestre tem menos de
metade das praças que devia ter. Isto acentua um problema que tem sido
identificado nos últimos anos, mas que continua a agravar-se: a pirâmide
hierárquica está tão distorcida que, no Exército, a proporção de chefes para
subordinados é de 1,25 oficiais e sargentos para cada soldado (ver infografia),
quando devia haver 1,4 praças para cada graduado. Em termos globais, nos três
ramos há 1,7 chefes por praça.
Um soldado da GNR
pode ganhar mais €490/mês do que na tropa
Na Força Aérea,
onde faltavam 544 praças o ano passado, há 5,8 oficiais e sargentos para cada
soldado e cabo — quando o rácio devia ser de 3,9. No entanto, a natureza do
ramo aéreo é diferente do Exército, uma vez que os oficiais pilotam as aeronaves,
enquanto praças e sargentos são pessoal de áreas técnicas de bordo ou de
manutenção e apoio no solo. Não são tropas para ocupar terreno.
Apesar de o
Governo ter criado, em maio, um quadro permanente de praças que possam fazer
carreira no Exército e na Força Aérea — ramos que só têm praças em regime de
contrato, por um máximo de seis anos —, a existência desse quadro na Marinha
não parece tornar a vida dos marinheiros mais entusiasmante. A Armada tinha uma
carência de 1116 praças no final do ano passado, o que representa um défice de
27% face às necessidades previstas. Na Marinha, há 3,2 oficiais e sargentos
para cada praça (quando o rácio devia ser de quase um para um).
O número de militares no final de 2022, explica fonte oficial do gabinete da ministra da Defesa, “reflete o final dos dois anos de pandemia, nos quais vigoraram regras extraordinárias que permitiram prorrogar os prazos dos contratos”. A quebra acentuou-se depois. Mas Helena Carreiras também sabe que “a reabertura do mercado de trabalho global (crescentemente competitivo) tem impacto nos níveis de atratividade e retenção, sobretudo em tempo de baixos níveis de desemprego”, aponta o gabinete da ministra nas respostas ao Expresso. O caso do sargento-ajudante Miguel Rego é um desses exemplos.
A governante, no
entanto, não deixa de enquadrar a crise de vocações militares nas tendências
internacionais: “Outros países estão a enfrentar situações semelhantes”, aponta
a mesma fonte oficial. Como exemplo, refere “a perda de efetivos e baixo
recrutamento nos Estados Unidos em 2022 ou as dificuldades na Alemanha, onde há
menos 7% de candidatos e taxas de desistência na formação a rondar os 30%”.
DA TROPA PARA A
POLÍCIA
A falta de atratividade
na carreira militar é revelada por um indicador avançado pelo Exército: dos 914
militares em regime de contrato que rescindiram o ano passado, 315 (34%)
quiseram sair da tropa para as forças de segurança. Este também é um dos
principais fatores identificados pela Marinha, onde as baixas remunerações
foram apontadas por 62,6% dos militares que saíram para a vida civil.
Segundo contas da Associação dos Oficiais das Forças Armadas (AOFA), o que os polícias levam para casa no fim do mês (englobando suplementos e subsídios) representa mais cerca de €490 brutos para as praças, quando comparado o recibo de vencimento com os guardas da GNR. Embora estas contas não sejam consensuais, muitos militares olham para as polícias como uma carreira mais atrativa. De acordo com dados da AOFA, os oficiais das Forças Armadas ganham, em média, menos €470/mês do que os oficiais da GNR — quando são formados na mesma escola — e os sargentos menos cerca de €280/mês. Na sua carta, o antigo sargento-ajudante diz à ministra que não é preciso fazer mais estudos para perceber as razões da falta de atratividade das carreiras militares. “Mais estudos? Para quê?”, questiona Miguel Rego (Expresso, texto do jornalista VÍTOR MATOS e infografia de JAIME FIGUEIREDO)
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