Os pais no Afeganistão enfrentam
escolhas impossíveis, como tirar as filhas ou filhos da escola para poder
alimentá-los ou pior – vender um filho ou casar uma filha de 12 anos para
impedir os irmãos de morrerem de fome. Quando os taliban voltaram ao poder, 43%
do PIB do Afeganistão era garantido por assistência externa. Ao mesmo tempo, de
acordo com o Banco Mundial, 2,5 milhões de pessoas (o correspondente a 77% dos
empregos nos centros urbanos) trabalhavam na área dos serviços e da construção,
ambas arrasadas pelo colapso da despesa pública. Segundo um perito das Nações
Unidas, citado num relatório do think tank International Crisis Group, nunca
uma economia moderna passou por um choque comparável.
Em Dezembro, alguns economistas estimavam que em menos de um ano quase todos os afegãos enfrentariam algum tipo de necessidade. Não foi preciso esperar: segundo dados da organização não-governamental Save The Children, 97% das famílias enfrentam dificuldades para dar aos filhos comida suficiente e quase 80% das crianças dizem ter ido deitar-se com fome nos 30 dias anteriores (as meninas têm quase o dobro das probabilidades de irem frequentemente para a cama com fome).
“As pessoas não têm nada para comer.
Podem não conseguir imaginar, mas as crianças estão a morrer à fome… A situação
é desesperada, principalmente nas aldeias”, descreveu a meio de Julho um afegão
que trabalha para uma agência humanitária ouvido pela ONG Human Rights Watch.
Uma família sua conhecida perdeu duas crianças, com cinco e dois anos, para a
fome, nos dois meses anteriores, afirmou. “Isto é inacreditável, em 2022.”
Sacha Myers, responsável de media da
Save the Children no Afeganistão, não precisa de imaginar. Tem visto de tudo um
pouco nas viagens que faz pelo país, incluindo as muitas que a ONG realizou
para recolher a informação incluída no relatório Ponto de ruptura: As vidas das
crianças depois de um ano sob domínio dos taliban, publicado a semana passada.
Pais “de coração partido” por terem de permitir que uma filha fique noiva aos
12 anos para que outros voltem a estudar, mães de lágrimas nos olhos por
tirarem os filhos da escola para os poderem alimentar ou pais que tiveram de
escolher entre deixar morrer um filho ou alimentar os restantes.
“Temos casos de pais que perdem os seus
filhos, crianças que morrem, basicamente, porque os pais não têm um dólar que
possam gastar para apanhar um táxi para o hospital ou para um centro de saúde
mais próximo”, descreve Myers, ao telefone a partir de Cabul. “Conheci uma
família que passou por isso no Norte do Afeganistão, numa província chamada
Jowzjan. Falei com um rapaz de 13 anos chamado Reza que contou como a sua
sobrinha de 18 meses morreu porque a família não podia dispor da pequena soma
de dinheiro necessária para apanhar um táxi para a cidade e levá-la ao
hospital.”
Estas são escolhas impossíveis. Os pais de uma bebé de ano e meio tentaram tratar da filha. Já a tinham levado duas vezes antes ao médico, mas ela continuava doente e “eles tiveram de decidir se continuavam a gastar todo o seu dinheiro no transporte e tratamento da bebé, enquanto as outras crianças da família começavam a morrer de fome”, conta. A certa altura, tiveram de tomar esta terrível decisão, deixaram de assegurar o tratamento da bebé e alimentaram os seus irmãos. “Tragicamente, a bebé morreu.” Este é apenas um exemplo, mas Myers sublinha que na ONG estão “sempre a ouvir estas histórias”.
Um ano depois da chegada a Cabul do movimento extremista, que derrubou as autoridades apoiadas pelos Estados Unidos e pelos outros países envolvidos na guerra de 2001 e na transição que se seguiu, a única boa notícia vinda do Afeganistão é que a segurança melhorou. Por causa disso, a Save the Children consegue agora chegar a áreas remotas do país, alcançando comunidades que não recebiam qualquer assistência há dez anos, ou mesmo “famílias que durante 20 anos não tinha tido nenhuma ajuda nem do governo nem de ONG”. Uma boa notícia, que só não é melhor porque a terrível crise de liquidez e a falta de financiamento externo não permite que as organizações lancem programas caros em regiões quase sem infra-estruturas.
Educar ou alimentar
Tendo em conta tantas crises
sobrepostas – falta de dinheiro a circular e retirada de grande parte da
assistência externa que deixaram milhões sem salário, seca, bens essenciais ao
dobro do preço… – é difícil definir prioridades no Afeganistão. Ao mesmo tempo,
a prioridade é sempre tentar sobreviver.
Apesar de os taliban terem proibido as meninas acima dos 12 anos de ir à escola (há zonas do Norte do país em que a regra não tem sido aplicada com grande rigor e as escolas clandestinas surgiram um pouco por todo o lado, a exemplo do que aconteceu a primeira vez em que os taliban estiveram no poder), entre as muitas barreiras que impedem as meninas (e os meninos) de ir à escola a pobreza será a principal. “Falei com muitos pais e parte-se-lhes o coração não poderem mandar os filhos para a escola. Olham para mim e perguntam: ‘Mas o que é que eu posso fazer? Posso dar-lhes uma educação ou posso alimentá-los.’ Não há escolha. Têm de garantir que as crianças sobrevivem”, diz Meyrs.
No caso das meninas, a proibição e a pobreza não explicam tudo: há razões culturais, pressões da comunidade para que não estudem e as escolas podem ser demasiado longe – muitas crianças vivem em zonas remotas e os pais podem sentir que a situação de segurança não é suficiente estável para as deixar ir. Como antes de 2001, voltaram a chegar do Afeganistão inúmeros relatos de pais que autorizam o casamento de uma filha menor em troca de dinheiro que lhes permita dar de comer aos restantes filhos. No relatório da Save the Children, surgem meninas que vivem aterrorizadas com esse destino, meninas que já viram isso acontecer a amigas ou às irmãs mais velhas.
Mina ficou noiva
“Falei com uma rapariga, a Mina, de 12 anos, e com a sua mãe, Sadiyah, estavam a passar por uma situação tão dolorosa, a família estava a ter muita dificuldade em lidar com o que lhes estava a acontecer”, conta Myers. “Como não tinham quaisquer rendimentos e nenhuma tinha forma de comprar comida, Mina, de 12 anos, tinha ficado noiva de um homem mais velho”, explica. “A própria Mina mal conseguia dizer uma palavra, podíamos adivinhar pelo olhar dela e pela linguagem corporal a tristeza que sentia.” Mina acabou por ter muita sorte. Aflitíssima com a situação, Sadiyah conseguiu adiar o casamento até Mina ter 18 anos e com o dinheiro que a família recebeu tanto Mina como a sua irmã mais nova puderam voltar à escola.
Às vezes não é preciso ficar-se noiva
para perder a vontade de viver. Hania era estudiosa e apaixonada pela escola,
tinha das melhores notas da sua turma. Com as escolas banidas para meninas
acima de 12 anos, ou a partir do sexto ano, Hania, de 15 anos, aluna do oitavo,
não pôde regressar às aulas. “Às vezes, ri e chora sem razão, e já não fala
connosco, nem sequer fala com a rapariga da casa ao lado, que era a sua melhor
amiga”, contou Rahmat, irmão mais velho de Hania ao site de notícias Rukhsana
Media, que se dedica a contar histórias de mulheres afegãs.
A mãe de Hania, Ziagul, levou a filha
ao médico e há quatro meses que ela toma antidepressivos para combater o
diagnóstico de depressão grave. Quando a jornalista visitou a família, Hania
estava no seu quarto com as cortinas corridas, a roer as unhas. Tem passado
grande parte do tempo assim, isolada, e perdeu muito peso, diz a mãe. Quando
não está no quarto, descreve o irmão, “está sempre sentada no canto da sala a
ler romances e relê o mesmo livro várias vezes”.
Toda uma geração
Um responsável do Ministério da Saúde,
citado pelo Rukhsana, diz que o número de mulheres e raparigas a procurarem
serviços de saúde mental aumentou de forma significativa. A Save the Children
não tem dúvidas de que esta é mais uma das crises que o Afeganistão enfrenta,
com mais de um quarto dos pais a descreverem sinais de depressão e ansiedade
nas filhas. “A UNICEF estima que cinco milhões de crianças precisam de apoio de
saúde mental no Afeganistão. Nós acreditamos que esse número é muito maior”,
diz a responsável da ONG britânica.
“Numa crise como esta a prioridade é
tentar garantir que as crianças não morrem de fome. Mas a longo prazo o facto
de as crianças não terem acesso aos cuidados de saúde mental de que precisam
vai ter um impacto tremendo”, diz Myers. “As ramificações serão gigantes para
cada uma destas crianças e para a comunidade. Se essa criança não recebe agora
esse apoio, poderá ter dificuldades em manter um trabalho ou sustentar a sua
família, e isso vai ter um efeito terrível nas famílias e depois nas comunidades.”
Bancos têm de abrir
E como acontece com todas as outras
crises afegãs, é preciso garantir esse apoio na forma de ajuda imediata de
emergência, mas será o planeamento de financiamento para este tipo de
assistência a mais longo prazo que “vai fazer a diferença entre conseguirmos ou
não ajudar as famílias a recuperar do que lhes aconteceu”, explica Myers. “Se
esta crise não for resolvida em breve, podemos perder toda uma geração de
crianças afegãs.”
“Precisamos de resolver a situação
económica e isso depende, em grande parte, da comunidade internacional, que com
as sanções e o congelamento de fundos externos do país, para além da retirada
de muitos, e muito necessários, financiamentos de longo prazo para o
desenvolvimento, provocou uma crise gigantesca”, explica Myers. Era este
financiamento que “mantinha a funcionar a maioria dos serviços essenciais, que
permitia pagar salários aos professores e aos prestadores de cuidados de saúde,
garantir que os hospitais estão equipados”. Quando este financiamento foi retirado,
o resultado foi a ruptura nos serviços.
Se isso for restabelecido, assegura, “de um dia para o outro vai haver muito mais funcionários públicos; os professores, médicos, enfermeiras e parteiras vão ser pagos”. Isso e o apoio humanitário “é o que pode permitir salvar vidas nos próximos dias e nos próximos meses”. Para além da Save the Children e de outras organizações internacionais, como a Human Rights Watch, um grupo de mais de 70 economistas e peritos pediu a semana passada aos Estados Unidos e aos outros países para libertarem os fundos do Banco Central do Afeganistão, que continua impedido de interagir com o sistema bancário internacional, com as instituições financeiras internacionais e com muitos sistemas bancários nacionais.
“Precisamos que haja mais apoio humanitário e que o financiamento de longo prazo seja restabelecido. Mas também precisamos que os bancos possam voltar a funcionar para que as pessoas que têm dinheiro possam aceder a esse dinheiro”, descreve Myers. “Basicamente, todo o país não tem o suficiente para comer. Isto não tem nenhum precedente, é a pior crise humanitária do mundo. O que se passa no Afeganistão não tem paralelo. Todas as respostas são poucas" (Publico, texto da jornalista Sofia Lorena)
Sem comentários:
Enviar um comentário