Zero viagens de hospitalidade e 68 ofertas, entre candelabros, serviços de chá ou café, pinturas ou livros. Mais de dois anos e meio depois da entrada em vigor das novas obrigações dos deputados relativas a presentes oferecidos por entidades públicas ou privadas, este é o saldo total das regras instituídas em 2019, no início da anterior legislatura. O dado mais saliente é o facto de nenhum deputado ter declarado desde então qualquer viagem de hospitalidade, uma informação confirmada ao DN pela secretaria-geral da Assembleia da República. Além da situação de pandemia, que abarca boa parte deste período, a esta circunstância não serão também alheias as polémicas que têm rodeado as viagens desta natureza por parte de titulares de cargos políticos. Em 2016, no que ficaria conhecido como o GalpGate, três secretários de Estado demitiram-se do Governo na sequência de uma viagem a França, a convite da Galp, para ver jogar a seleção portuguesa no Europeu de futebol. Na sequência dessa polémica, que levaria à criação de um Código de Conduta para o Executivo, a própria Assembleia da República constituiu um grupo de trabalho para definir regras sobre questões como a das viagens (não se incluindo aqui as viagens em missão parlamentar, custeadas pela própria AR).
A lei que entrou em vigor em 2019 estipula que os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos - convidados nessa qualidade - podem aceitar os convites "que lhes forem dirigidos para eventos oficiais ou de entidades públicas nacionais ou estrangeiras". Mas se a entidade que convida for privada as regras são outras: só podem ser aceites os convites para viagens "até ao valor máximo, estimado, de 150 euros", que sejam "compatíveis com a natureza institucional ou com a relevância de representação própria do cargo" ou que "configurem uma conduta socialmente adequada e conforme aos usos e costumes".
Presidentes do parlamento recebem 90% das ofertas
Já no que se refere às prendas, e de acordo com os registos da Assembleia da República, foram comunicadas 68 desde que a lei entrou em vigor até à atualidade.
Sem surpresa, o maior beneficiário destas ofertas é o presidente da Assembleia da República (PAR) - no caso, os dois titulares do cargo na anterior e atual legislatura, Eduardo Ferro Rodrigues e Augusto Santos Silva. Do total de 64 ofertas que constam dos registos dos deputados (às quais se somam mais quatro relativas a julho e agosto, que não constam ainda dos registos online, segundo os dados da secretaria-geral da AR ao DN), 54 foram oferecidas ao PAR, o correspondente a uma percentagem de 90%. Antes de deixar o cargo, Ferro Rodrigues declarou 28 ofertas aos serviços da AR, Augusto Santos Silva já vai em 26 desde o início da legislatura, em finais de março.
O tipo de prendas é um reflexo das funções institucionais da segunda figura do Estado. Augusto Santos Silva recebeu, por exemplo, dois candelabros do parlamento sueco, uma caixa de joias em madrepérola do embaixador da República da Coreia ou um serviço de chá do embaixador da República Popular da China. Já o antecessor, Ferro Rodrigues, declarou um "jarro em porcelana de grandes dimensões", oferecido pela presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi; um serviço de café oferecido pelo embaixador chinês; ou uma "escultura em madeira" do presidente da República da Guiné-Bissau.
Entre a lista de prendas dos dois presidentes do Parlamento constam ainda objetos como um pisa-papéis, vários quadros e aquele que é o item maioritário: livros. Sem exceção, todas as ofertas declaradas pelos dois PAR têm indicação para serem integradas no "património da Assembleia da República", uma decisão que cabe aos serviços da secretaria-geral.
Além dos dois presidentes da AR apenas mais dez deputados declararam ofertas (sem contabilizar as quatro cujo registo ainda não está disponível), entre as quais se contam uma aguarela, um livro, um serviço de café e outro de chá, duas camisolas personalizadas da seleção ou uma mala de viagem. Duas destas ofertas foram destinadas ao espólio da AR, cinco foram devolvidas aos deputados por terem um valor inferior a 150 euros. Três ofertas - um cabaz com produtos dos Açores oferecido pelo secretário regional da Juventude, Qualificação Profissional e Emprego - foram também devolvidas aos parlamentares, apesar de avaliadas em 169 euros. O Código de Conduta dos Deputados determina que "são devolvidas aos parlamentares" as ofertas de "natureza exclusivamente simbólica ou comemorativa, sem valor utilitário ou artístico de relevo" e de valor inferior a 150 euros, as "publicações e outro material informativo" e "os produtos perecíveis recebidos no quadro da atividade de representação parlamentar, quando os mesmos se enquadrem em finalidades exclusivas de promoção de atividade produtiva local".
De acordo com o mesmo documento os deputados abstêm-se de aceitar "ofertas de pessoas singulares ou coletivas, públicas e privadas, nacionais ou estrangeiras, de quaisquer tipos de bens ou serviços que possam condicionar a independência no exercício do seu mandato", considerando-se que "pode existir um condicionamento quando haja aceitação de bens ou serviços de valor estimado igual ou superior a 150 euros". Assim sendo, as ofertas com um valor estimado superior "são apresentadas junto da secretaria-geral da AR, para efeitos do seu registo e definição do seu destino" (DN-Lisboa, texto da jornalista Susete Francisco)
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