sábado, novembro 26, 2016

Anita Gohdes: “As redes sociais não elegem presidentes”

Com a eleição de Donald Trump para a Casa Branca, ficámos todos a discutir o papel que as redes sociais tiveram na vitória de um homem que nenhuma sondagem ou analista mainstream previu. Sem qualquer nuance, Paul Horner, o agora célebre autor de “notícias” falsas no Facebook, disse uma frase que vai fazer parte da história destas eleições: “Penso que Donald Trump está na Casa Branca por minha causa”. Se uns acharam que o humorista americano estava a exagerar ligeiramente, outros acreditam que as redes sociais vão destruir a democracia ocidental. A cientista política alemã Anita Gohdes, professora de Relações Internacionais no departamento de Ciências Políticas da Universidade de Zurique e membro do Center for Comparative and International Studies, é taxativa: “As redes sociais não elegem Presidentes”. Mas também diz que, finalmente, estamos a perceber que “não são a ferramenta mágica que vai tornar o mundo melhor” e que “a lua-de-mel das redes sociais acabou”.

Há anos que estuda e documenta a repressão estatal e a violência política à escala global, ao mesmo tempo que investiu muitas horas a pensar como quantificar as violações de direitos humanos. O seu ensaio sobre como os governos usam a tecnologia das comunicações digitais para definir estratégias de repressão foi premiado e tornou-se uma referência. A linha de investigação de Gohdes expõe um aparente paradoxo num planeta onde há cada vez mais democracias: “A censura é uma indústria em crescimento”.
E revela outra coisa: o lado escuro das redes sociais. Donald Trump foi eleito por causa do Facebook e do Twitter? As redes sociais têm o poder de eleger Presidentes?Não. As pessoas votam nos candidatos de que mais gostam. As redes sociais não elegem presidentes. Dito isso, o papel das empresas que têm redes sociais, os algoritmos que elas usam, e o poder que têm para criar e dar corpo ao discurso político, tem uma importância vital. E por isso é encorajador ver os políticos e os cidadãos envolvidos nesta discussão. De uma vez por todas, as empresas das redes sociais, como o Facebook, têm de assumir a sua responsabilidade — e levar esta questão muito a sério. Hoje, uma enorme fatia da população mundial recebe a maior parte das notícias que lê através do Facebook. E o Facebook vir dizer que não é uma empresa de media não muda o facto de o Facebook ter uma influência gigantesca sobre o que as pessoas lêem — e sobre o que é mantido longe da sua vista.
Estamos a acordar para o “lado escuro” das redes sociais?
Estamos seguramente a constatar que a euforia inicial em torno da ideia de as redes sociais serem forças de libertação já foi substituída por uma aceitação muito mais sóbria da ideia de que as redes sociais não são uma ferramenta mágica que fará o mundo melhor.
Em vez disso — e tal como acontece com todas as tecnologias — as redes sociais são ferramentas que podem enriquecer os processos democráticos, pois ajudam a dar voz aos que não a têm, mas que, por outro, são uma plataforma excelente para os populistas disseminarem a sua mensagem de forma muito eficaz. A lua-de-mel das redes sociais acabou.
A chanceler alemã Angela Merkel acaba de dizer que a distribuição de “notícias” falsas nas redes sociais está a contribuir para o aumento do populismo e dos extremos políticos nas democracias ocidentais. Concorda?
Devemos ter cuidado e não estabelecer relações de causa-efeito. Os estudos mostram que o que mais influencia as preferências das pessoas ainda é o que elas retiram da rede social da sua “vida real” — os que estão à nossa volta no nosso quotidiano.
Por isso, se é natural que as “notícias” falsas incitem e provoquem sentimentos populistas, essas notícias alimentam-se de descontentamento e de medo que já existe. Para além disso, se as plataformas que divulgam “notícias” falsas são um problema sério, muitas dessas histórias não são necessariamente falsas ou fabricadas. O que fazem é apresentar um ponto de vista extremamente parcial ou exclusivamente um dos lados. E é muito mais difícil lidar com estas histórias. Podemos tentar usar filtros de modo a excluir histórias falsas, mas no momento em que começarmos a apagar histórias parciais ou enviesadas, entramos no território da censura política, uma coisa que as democracias ocidentais têm orgulho em não fazer.
Qual dos lados é o mais eficaz a usar as redes sociais, o “benigno”, usado pelo cidadão comum para mobilizar a sociedade contra regimes repressivos, ou o “maligno”, usado por ditadores e governantes opressivos para esmagarem revoltas pró-democracia?
As redes sociais estão a evoluir de forma constante e nesse processo assistimos a uma luta permanente entre os que lutam para que a sua voz marginalizada seja ouvida, e os que representam interesses não-democráticos ou autocráticos.
A vontade de os governos manterem o seu poder político a todo o preço traz-lhes uma vantagem: a tendência é esses líderes controlarem o acesso à Internet nos seus países. A censura e a tecnologia de vigilância é uma indústria em expansão — uma indústria que está a ajudar os que estão no poder a espiarem os seus cidadãos e a censurar conteúdos dentro das suas fronteiras. Por outro lado, desde que os ficheiros de Edward Snowden foram tornados públicos, os cidadãos e os activistas passaram a estar muito mais atentos a este tipo de questões.
Nos últimos anos, o número de pessoas que usam ferramentas para enganar a censura explodiu. Do mesmo modo que explodiu o número de pessoas que trabalha activamente para manter as suas comunicações seguras e encriptadas.
As redes sociais estão a ajudar mais os ditadores ou os movimentos pró-democracia?
A investigação mostra-nos que, em termos globais, o aparecimento da Internet levou à consolidação do poder autocrático — o oposto do que estaríamos à espera. O que vemos é os governos não-democráticos a movimentarem-se na Internet com cada vez mais conhecimento e agilidade, ao mesmo tempo que o mercado de dispositivos para controlar a Internet vive um boom. Os movimentos sociais que lutam contra este tipo de regimes estão a adaptar-se a este novo ambiente de informação, mas os movimentos de cidadãos que têm mais sucesso são aqueles que investem em estratégias de protestos de tipos muito diversificados — usar apenas as redes sociais não muda sistemas políticos.
Vivemos a “ilusão da informação perfeita”
Governos autocráticos em todo o mundo têm sido extremamente activos a desenvolver e a afinar novas ferramentas de vigilância, manipulação e censura do fluxo digital de informação. Qual foi a ferramenta mais cruel e terrível que descobriu na sua pesquisa?
Apesar de hoje existirem formas muito mais sofisticadas de fazer censura, muitos governos já fecharam de forma absoluta o acesso à Internet dentro das suas fronteiras. Fazem-no quando sentem que a segurança nacional está em perigo. Há exemplos recentes disso no Gabão, Sudão, Síria, República Democrática do Congo, Índia, Paquistão, e muitos outros. Este tipo de censura não só é extremamente assustador — imagine não poder contactar ninguém durante dias e dias seguidos — como tem custos económicos muito elevados. A vida, os negócios e tudo à nossa volta pára se não tivermos acesso à rede global.
Ao analisar os governos que usam redes sociais para exercer violência de Estado contra os cidadãos, que país mais a chocou?
Há muitos exemplos de países que usam métodos brutais contra os seus cidadãos com base em informação recolhida nas redes sociais. Apenas alguns: o Bahrain, a Etiópia, o Vietname e, claro, a Síria.
Ao tentar medir o volume de violações dos direitos humanos, o que concluiu — as redes sociais ajudaram ou pioraram os direitos humanos no mundo?
As redes sociais aumentaram de forma radical a quantidade de informação em tempo real que hoje temos sobre os conflitos no mundo. Isso é um avanço importantíssimo.
O lado negativo é aquilo a que eu chamo a “ilusão da informação perfeita”, que é acharmos que, por causa das redes sociais, sabemos rigorosamente tudo o que se está a passar no mundo.

No trabalho que fiz para tentar quantificar as violações de direitos humanos em conflitos, percebi que, apesar de sabermos hoje muito mais sobre o que está a acontecer nos conflitos no mundo, continua a haver enormes pontos cegos sobre os quais pouco ou nada é reportado. E negligenciar esses pontos cegos é tão perigoso hoje como era há 50 anos (Público, entrevista da jornalista Bárbara Reis)

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