segunda-feira, fevereiro 29, 2016

Contas dos partidos: porque acho que o Tribunal Constitucional deve abdicar dessa responsabilidade imposta?

De repente, provavelmente por causa do crescimento acelerado da abstenção em Portugal - que questiona, sem dúvida, a representatividade dos eleitos, algo que não se pode confundir com a sua legitimidade - andam todos preocupados com a dignificação dos políticos e dos partidos, com a recuperação do prestígio e da respeitabilidade dos políticos e dos eleitos em geral. Também concordo que essa é uma das principais prioridades da nossa democracia.

Longe vão os tempos, logo depois do 25 de Abril de 1974, em que os partidos eram olhados com confiança e interesse, em que havia grande militância e as eleições registavam por isso taxas de abstenção inferiores a 25% - em 1975, nas primeiras eleições depois do 25 de Abril, a abstenção foi inferior a 10%, mas facilmente se percebe que assim tenha sido!
Quando a conversa, como é o caso, não interessa, então a estratégia do costume é a de desvalorizar a abstenção, apontando para a teoria de uma "abstenção real" que ninguém sabe quantificar ao certo e que os que a ela se referem são incapazes de apresentarem fundamentos seguros, cientificamente provados para conclusões estapafúrdias com que nos brindam ou intoxicam, só para disfarçar o incómodo e a realidade cada vez mais evidente, a indiferença das pessoas perante os actos eleitorais.
Os cadernos eleitorais estão desactualizados? Parece que sim. O que é que contribui para essa desactualização para além da emigração forçada e acelerada pela crise de 2010 e que subsiste até hoje e pela burocracia institucional que não consegue resolver o problema dos cidadãos, sem lhes exigir o registo eleitoral a quem vive no estrangeiro e apenas cá se desloca em férias e nem sempre todos os anos. Cabe ao estado, nas suas diferentes estruturas e patamares de poder, responder com verdade e de forma inquestionável a estas dúvidas. Particularmente a essa dúvida essencial: o que é que impede a imediata depuração dos cadernos eleitorais agora que vamos entrar (presume-se...) num ciclo eleitoral que começa este ano com as regionais nos Açores? Será que as Juntas de Freguesia não conseguem actualizar os dados das respectivas freguesias? Se nem isso conseguem fazer então para que servem realmente estes organismos autárquicos? Os partidos têm vindo a alimentar a abstenção? Mas será que alguém sério e informado ousa desmentir tal constatação? Os partidos perderam espaço, os políticos acabam por ser arrastados para um turbilhão de contestação, as redes sociais e a libertinagem do anonimato funcionam como um talho de esquartejamento da dignidade e do carácter das pessoas, falando de tudo até do que não conhecem nem sabem, enfim, há uma panóplia crescente de factores que são responsáveis por tudo o que se tem passado. Os últimos anos significaram a perda da respeitabilidade que partidos e políticos conseguirem conquistar nos anos setenta, oitenta e início dos anos noventa? Indiscutivelmente a abstenção também tem alguma a ver, diria muito a ver, com o facto dos políticos estarem abaixo da linha vermelha da credibilidade que se lhes exige. Muitas vezes pagando por erros que nem todos cometem. 
Mas quando se fala na dignificação da política, há um assunto, sempre complexo e sempre incómodo, que salta logo para a ribalta e que separa as pessoas, divide opiniões e origina habilidades legislativas corporativistas que acabam por acelerar o descrédito em vez de reduzir essa opinião negativa que as pessoas têm dos partidos e da politica em geral. Mesmo que tenham a consciência, e têm, que a política e os partidos são essenciais à democracia e à preservação da nossa liberdade e da nossa identidade. Refiro-me ao processo de controlo das contas partidárias.
Continuo a afirmar, e reafirmo as vezes que forem necessárias, que o Tribunal Constitucional não é, pela sua natureza, finalidade e pela própria dignificação que lhe deve estar associada e ser tributada, a instituição apropriada para este tipo de trabalho. Penso que ao ver-lhe atribuída, através de um organismo que lhe está afecto - a Entidade das Contas dos Partidos - a responsabilidade pelas contas dos partidos, o TC acaba por ver-se envolvido numa crise espécie de identidade institucional - afinal para que serve e o que faz o Constitucional? - e correr o risco de lhe faltar o distanciamento efectivo face à política e aos seus protagonistas afectando a credibilidade e a isenção  que as pessoas dele esperam.
O TC não se pode confundir com partidos nem tem nada que andar a vistoriar as contas dos partidos.
Veja-se que só em Fevereiro de 2016, cinco anos depois, é que ficamos a conhecer a decisão do Tribunal Constitucional sobre as contas das presidenciais de 2011. Vergonhoso.
É neste quadro que acho que enquanto persistir esta situação, enquanto o Tribunal Constitucional andar de braço dado com os partidos - desde quando as contas dos partidos, repito, as meras contas dos partidos têm que ter a dignidade constitucional ou para-constitucional? - e ser obrigado a controlar (ineficaz e insuficientemente) as suas contas, o descrédito da política, e por tabela o descrédito do próprio TC, no que a esta matéria específica diz respeito, continuará em continuada degradação.


A CNE perdeu essa função (contas da campanha eleitoral) e o  Tribunal de Contas foi rasteirado no controlo das contas gerais
Afinal que solução?
Tenho recebido, a propósito das minhas opiniões e ideias quanto a esta matéria, algumas manifestações de oposição, diria mesmo de forte contestação, quer em conversas pessoais, quer em mensagens  que tenho recebido.
Há, constato isso, uma aversão quase doentia dos políticos relativamente a um envolvimento do Tribunal de Contas neste processo de fiscalização das contas dos partidos. Não percebo, confesso, em que assenta tal desconfiança. Tenho uma opinião própria sobre este tema, formada ao longo dos anos e alicerçada em factos concretos, mas desconheço se de facto ela coincide com a opinião da maioria dos políticos. Desconfio que não.
De uma maneira geral, os testemunhos de divergência que tenho recebido, aos quais anexam argumentos que não têm rigorosamente nada a ver com o tema e com a discussão, a ideia dos que me criticam passa, segundo percebo, pela constatação de que o Tribunal de Contas não tem um manual específico para os partidos, pelo que usou durante anos os mesmos procedimentos na apreciação das contas dos partidos que utiliza, por exemplo, na apreciação das contas de uma Junta de Freguesia ou de uma empresa pública. Há políticos que entendem que isto não pode acontecer, há mesmo quem veja nisso uma espécie de humilhação deliberada dos partidos e a sua desvalorização e ridicularização aos olhos da opinião pública.
Ou seja, os partidos que definem através dos seus representantes, os procedimentos de instituições como o Tribunal de Contas, dando instruções de como devem proceder na fiscalização das contas de instituições e organismos públicos, acham que essa lógica não se aplica aos partidos, sem que coloquem em cima da mesa argumentos suficientemente credíveis aos olhos das pessoas.
É natural que, perante esta dualidade de critérios, os cidadãos se interroguem: como se explica que uma empresa pública ou uma junta de freguesia, que recebem transferências financeiras do estado consignadas a determinados fins concretos constantes da lei, têm que ser fiscalizadas pelo Tribunal de Contas de uma determinada forma  e os partidos políticos, que igualmente beneficiam de transferências públicas (subvenções atribuídas no quadro de representações parlamentares, de resultados eleitorais ou de financiamento de campanhas eleitorais) que eu estimo correspondam, de uma maneira geral, a mais de 90% das receitas próprias, terão que submeter-se a procedimentos diferenciados, sem que se perceber bem porque razão assim tem que ser.
Perante isto, que alternativas se colocam ao Tribunal Constitucional para que se pacifique esta discussão e de credibilize o processo de controlo das contas dos partidos? 
Considerando a importância do Constitucional no topo da estrutura piramidal da justiça portuguesa, considerando as suas atribuições e competências específicas, considerando até o protagonismo que o TC conheceu nos quatro anos de austeridade violenta e cega e de criminosa roubalheira de salários, pensões, reformas e responsabilidades constitucionais do estado social para com as pessoas, sobretudo as mais vulneráveis e mais carenciadas,  para depois andara a encher a pança dos banqueiros corruptos, de bancos falidos e de outras  mafiosidades no sector financeiro, julgo que existem duas alternativas possíveis:
  • - uma primeira envolvendo apenas a Comissão Nacional de Eleições no que às despesas (todas) de campanha eleitoral diz respeito, por via de uma estrutura própria liderada por um magistrado indicado pelo Tribunal de Contas;
  • - uma segunda, virada para a fiscalização das contas dos partidos, particularmente a utilização das subvenções públicas, a ser devolvida ao Tribunal de Contas.
Adicionaria uma terceira opção, que pessoalmente me parece plausível, e que passaria pela criação de um organismo - que até poderia ser a Entidade de Contas mas com outra configuração - juntando CNE e Tribunal de Contas a quem caberia o veredicto final sobre a elaboração do respectivo parecer e do envio, sem ou não, para o Tribunal Constitucional para procedimentos que fossem julgados os adequados face às situações irregulares que fossem detectadas.
Gostem ou não os partidos - e parece-me que não gostam - eles terão que se submeter a um controlo mais efectivo e eficaz das suas contas, para que não subsistam dúvidas junto das pessoas, dos eleitores em concreto.
Basicamente o que é que eu acho? Que em primeiro lugar devemos preservar rapidamente a imagem e a posição do Tribunal Constitucional evitando que se confunda com partidos, com contas de partidos com toda a polémica, dúvidas, suspeições e desconfianças associadas a este procedimento. Ninguém acredita que o Tribunal Constitucional garanta que as contas dos partidos que lhe são apresentadas correspondem à realidade. Mesmo que isso aconteça. A desconfiança e a suspeição cimentadas ao longo dos anos retiram ao TC espaço de manobra para continuar a reclamar, ao mesmo tempo, o seu prestígio e querer sujeitar-se a este tipo de trabalho que se pela natureza, exigências se encaixa muito mais facilmente e melhor noutras instituições.
Finalmente não percebo qual é o problema da Comissão Nacional de Eleições ser chamada a controlar os gastos financeiros dos partidos  ou dos candidatos individuais, no caso das presidenciais, nos diferentes actos eleitorais. Basta consultar o site institucional ada CNE para percebermos que no caso das regionais a CNE deixou efectuar esse controlo apenas desde 2007. No caso das europeias a CNE deixou de ter essa responsabilidade a partir de 2004, nas presidenciais desde 2001, nas legislativas a partir de 2002 e nas autárquicas desde 2001.

Acresce finalmente que estamos a falar de partidos com assento parlamentar que no final de 2014 tinham uma dívida total da ordem dos 35 milhões de euros - o PS era o mais endividado, com um passivo financeiro de 19 milhões de euros. Estamos a falar de valores que constam da informação que os partidos entregaram à denominada à Entidade das Contas, que funciona junto do Tribunal Constitucional. No final de 2008 esse endividamento era apenas de 10 milhões de euros.
Sobre as dúvidas acerca dos procedimentos do Tribunal de Contas na apreciação das contas partidárias - e  não me repugna nada admitir que o legislador encontre mecanismos específicos para o controlo das contas dos partidos, caso seja esse o entendimento maioritário - e que parecem ser a explicação para as mudanças na legislação, culminadas com a lei da Assembleia da República de Janeiro de 2015 (que afastou definitivamente o Tribunal de Contas destes domínios), admito que estes se submetam a um trabalho diferenciado, mas assente num manual de procedimentos que não pode significar, seja a que pretexto for, o branqueamento de qualquer situação, a ocultação dos factos e de responsabilidades ou a imposição de um trabalho caracterizado por qualquer superficialidade inconclusiva.
Isto também livrar-nos-ia de partidos, regra geral estimulados e liderados por pessoas que estiveram anos envolvidos nos chamados partidos tradicionais do sistema político, que neles realizaram todo o seu percurso de vida político e que, de um momento para outro descobrem a "pureza" e a "transparência" que curiosamente, ou talvez não, nunca os vi reclamar quando podiam e deviam (LFM)

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