Relatório
da Human Rights Watch denuncia "abusos aberrantes" por parte das
forças de segurança da Venezuela contra a população em Apure, um dos estados
mais pobres da Venezuela, uma região abandonada pelo regime onde grupos
guerrilheiros penetraram e engordam a influência.
A
guerra, que faz o que as guerras fazem, mudou-se para Apure, um dos estados
mais pobres da Venezuela, há mais de um mês, alimentada pelo conflito e
conivência com “grupos irregulares”, sobretudo forças dissidentes das Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Há grupos armados colombianos e um
venezuelano a operar por ali, junto à fronteira colombiana, sedentos de dominar
as rotas e o chão a favor da circulação de droga e outras mercadorias ilícitas.
A Human Rights Watch (HRW) denunciou, na segunda-feira, “abusos aberrantes” por
parte do exército venezuelano naquela região. Pelo menos 6000 residentes já
fugiram para o outro lado da linha que divide os dois países.
A
ofensiva das forças venezuelanas contra os tais grupos irregulares começou a 21
de março. Testemunham-se aviões militares a sobrevoar a zona, outros veículos
de guerra a calcar a terra e armas pesadas a levantar pó. Na quarta-feira, o
Ministério da Defesa da Venezuela deu conta de várias baixas entre os
militares, após “batalhas sangrentas”. Alguns vídeos nas redes sociais, cuja
veracidade não foi verificada, mostram cadáveres de tropas venezuelanas
espalhados numa área de vegetação. Terão havido também várias detenções, que
supostamente estão a oferecer ao regime “informação valiosa”. O comunicado do
Ministério da Defesa dizia ainda que os confrontos continuariam e que até se
intensificariam, com o fim “neutralizar qualquer reduto destes deliquentes”,
até ser garantida a sua “total expulsão e derrota definitiva”.
No documento da ONG Human Rights Watch podem ler-se menções a execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias, torturas de distintas naturezas e ainda julgamentos de civis em tribunais militares. Segundo relatos recolhidos, as forças venezuelanas associadas aos “abusos aberrantes” são as Forças de Ações Especiais da Polícia Nacional Bolivariana, a Guarda Nacional Bolivariana e o Comando Nacional Anti-extorsão e Sequestro.
“O que
documentámos em Apure são violações dos direitos humanos gravíssimas cometidas
por forças de segurança venezuelanas, no contexto do que eles chamam ‘uma
ofensiva contra os grupos armados ilegais'”, diz ao Expresso fonte daquela
organização. “A realidade é que, em Apure ou noutros lugares da fronteira da
Venezuela, operam abertamente vários grupos armados ilegais, incluindo o ELN
[Exército de Libertação Nacional] e algumas dissidências das FARC.”
E
continua: “O que se está a passar agora, em Apure, desde 21 de março, é que as autoridades
venezuelanas estão a ir contra o que parece ser uma das dissidências da FARC
para favorecer outra dissidência e manter o controlo e os vínculos sobre as
atividades ilegais naquela zona. A consequência é a de as pessoas estarem a
fugir de Apure, com muitíssimo medo. Há 300, 400 pessoas deslocadas
internamente, na Venezuela, e outras 5800, que foram para a Colômbia, estando
agora em albergues em Arauca, do lado colombiano, outras estão em casa de
familiares ou quintas nas zonas rurais”. A situação, seja nos albergues ou até
em acampamentos, cria outro desafio em contexto de crise sanitária, já que não
é possível manter o distanciamento social. “As autoridades locais e as agências
humanitárias estão a tentar dar alguma assistência humanitária, mas não é
suficiente”, lamenta.
A HRW,
denuncia “abusos” na cidade de La Victoria e nas zonas rurais perto daí, fez
inúmeras entrevistas a locais. As execuções extrajudiciais são talvez o facto
mais impactante desta história, alerta a fonte daquela organização. Foram
feitas análises forenses, há fotografias dos corpos e poucas dúvidas: não serão
vítimas de confrontos, mas sim de execuções. A fonte daquela entidade menciona
os “testemunhos de tortura com um nível de insanidade e abuso que não deixa de
doer, ainda que se oiça reiteradamente em distintos casos”, uma realidade que
fez andar algumas investigações internacionais de organismos importantes,
nomeadamente do conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Carlos
Pérez e Diego (nomes fictícios), de 28 e 14 anos, contaram àquela organização
que foram levados para casas diferentes por 15 agentes das Forças de Ações
Especiais da Polícia Nacional Bolivariana e que, de joelhos e depois de
interrogados sobre eventuais ligações às organizações de guerrilheiros, foram
pontapeados nas costas e obrigados a comer terra. Carlos chegou a ter uma arma
apontada ao pescoço e ouviu o fatal gatilho a ser pressionado, mas a pistola
estava descarregada.
No dia
25 de março, as Forças de Ações Especiais entraram na quinta onde Pablo Ramírez
(nome fictício) e a família vivem e trabalham, numa zona rural de La Victoria.
Depois de lhe espetarem uma navalha num dos dedos da mão, usaram um alicate
para o puxar e torcer. “Senti que o iam partir”, admitiu à HRW, depois de ser
ameaçado de morte. Pablo revelou ainda que ameaçaram levar-lhe o filho de cinco
anos, assim como cortar a barriga da mulher, grávida de cinco meses, para
arrancar de lá o bebé.
Não
são casos isolados, trata-se de uma prática sistemática, lamenta a fonte da
HRW. “O mais triste é isso”. A esperança na mudança, desabafa, vive meramente
na ação da comunidade internacional, visto que na Venezuela “o poder judicial é
um apêndice do poder executivo”.
O
diretor do Centro de Investigaciones Populares e professor da Universidade
Central da Venezuela, Alexander Campos, entende que a principal causa para o
drama em Apure vive na “falta de domínio efetivo de território”. Ou seja, “a
origem do que está a acontecer ali é o Estado venezuelano, por distintos
factores e distintas razões, estar a perder o domínio do território. Agora, em
nosso entender, o principal responsável da perda desse domínio é precisamente o
Estado encarregado de manter esse domínio, pois vive numa permanente
convivência ideológica e delinquente com os distintos atores violentos que ali
estão presentes”.
Uma
reportagem do “New York Times” (NYT), publicada na segunda-feira, 26 de abril,
dá força à tese. O título conta história: “Grupos terroristas instalam-se na
Venezuela enquanto cresce a anarquia”. O artigo fala de territórios de “um país
em caos” ocupados e manejados por “criminosos e insurgentes”. Um grupo referido
por aquele diário norte-americano, “considerado terrorista pelos Estados Unidos
e União Europeia”, olha pela população, entrega àquela gente água potável,
oferecem-lhes consultas médicas e servem de mediadores em disputas de terras ou
divórcios ou atuam até como justiceiros perante ladrões de gado. Vão ganhando
influência, legitimidade, perante uma população abandonada e esfarrapada na
dignidade. Afinal, o colapso do país permitiu que estes grupos se instalassem e
ocupassem cada vez mais terras desta área abandonada pelo regime. Um dos
testemunhos ouvidos pelo “NYT” foi o de um líder indígena, que revelou
surpreendentemente que os insurgentes deram-lhes “estabilidade”. Mais:
“Trouxeram a paz”.
Alexander
Campos esboça um complexo xadrez de influência ali na região, mencionando
vários grupos - “são bastantes” -, intenções e confrontos e conivência das
forças militares venezuelanas. De acordo com o documento da HRW, os grupos
presentes em Arauca e Apure vão desde o já mencionado Exército de Libertação
Nacional (ELN), uma guerrilha formada na Colômbia, nos anos 60, ao Frente
Décimo Martín Villa e Segunda Marquetalia, duas forças que surgiram das
desmanteladas FARC, que ocorreu sobretudo em 2016, após os acordos de paz. Mas
não só guerrilheiros ou grupos venezuelanos operam ali: as Forças Patrióticas
de Libertação Nacional, um grupo venezuelano criado nos anos 90, também fareja
na zona.
Muita
pólvora e sangue depois, o que conseguem realmente é manejar as atividades
ilegais “sem qualquer impedimento”, explica o investigador, justificando-o com
a “pacificação e regularização da convivência que ali está”. Ou seja, é uma
história em marcha, mutável, que fala ao sabor do vento e da bala, do poder.
“Operam ali fundamentalmente para controlo das atividades ilícitas de distintos
calibres, fundamentalmente o contrabando de droga e minerais preciosos, até
gasolina e esse tipo de coisas. Como aliados ideológicos dos políticos do
regime, estão ali para levar adiante o negócio, mas estão também para servir o
regime de sustento.”
Alexander
Campos não sabe dizer quando começou o conflito na fronteira, já que o Estado
venezuelano nunca teve pleno domínio da fronteira, principalmente da
colombiana, pois é muito grande. Apesar de haver muitos atores violentos,
“havia poucos conflitos abertos até à entrada deste regime militar
venezuelano”, esclarece.
Este
investigador vê o Governo como “um sócio com os seus compinchas”, pois atuam “para
favorecer a ala guerrilheira”, em Apure. Isto é, “está claríssimo que está a
libertar o caminho para eles penetrarem livremente e tenham o negócio. Estão a
atuar como cúmplices, para além disso estão a atuar com toda a brutalidade
possível”.
Se a
este investigador preocupa sobretudo a urgência humanitária que é semeada
debaixo dos pés de insurgentes e forças venezuelanas, a nível político o que
teme é a criação de “um corredor” que poderá abrir caminho para a engorda da
influência de uma facção das FARC, obtendo carta branca para o narcotráfico.
Mais: Campos receia que este capítulo da história possa levar a uma guerra
“muito mais aberta” com a Colômbia. E isso, garante, “teria dimensões
horrorosas” (Expresso, texto do jornalista Hugo Tavares da Silva)
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