quinta-feira, dezembro 10, 2009

Opinião: "Dubai : Um país pode fechar?"

"Um país pode ir à falência como se fosse uma empresa? Pode, mas não é propriamente costume. O Dubai é a mais recente dor de cabeça dos investidores internacionais. A história prova que não será a última. Apalavra esquizofrenia pode ser a mais acertada para entender o mapa da cidade do Dubai: uma nesga de terra entre o mar e o deserto, coberta de arranha-céus a perder de vista como se estivessem a tentar chegar às nuvens que ali quase não existem, num desassossego paisagístico impossível de compreender. Vista mais de perto, em imagens reais, a cidade do Dubai parece um cenário onde ninguém vive. E não está muito longe disso: é mesmo um cenário, criado para albergar as bizarrias imobiliárias de quem tem dinheiro para as pagar. Ou tinha. Ou tinha quem tivesse por ele, como se veio a descobrir há pouco mais de uma semana - como se ainda ninguém tivesse percebido, neste mundo a ressacar da crise do ‘subprime' norte-americano, a bomba de tijolos que ali foi construída para desespero da memória dos beduínos e para felicidade dos novos-ricos sem-fronteiras. O caso mais sério de descontrolo-motor dos neurónios de quem pensou que o Dubai devia ser aquilo em que se transformou, é a ilha em forma de palmeira que foi plantada à frente da cidade, em pleno mar, como se de repente os ricos de todas as latitudes tivessem sido atingidos por uma doença infecto-contagiosa só curável através da ingestão de água do Golfo Pérsico e quisessem todos ter uma casa em cima do frasco de comprimidos. As casas construídas naquela espécie de folhas da tal palmeira demoraram em média três dias a serem colocadas no mercado. Um mercado que, segundo relatos oriundos do Dubai, olha como despiciendo qualquer negócio imobiliário onde os ganhos fiquem abaixo dos 30%. Uns metros mais a Este, no sentido do estreito de Ormuz - que chegou a ser uma praça-forte nacional de onde os portugueses espalhavam a boa-nova entre as tribos de infiéis à espadeirada - fica o Burj Al Arab, um dos hotéis mais luxuosos do mundo (onde qualquer jogador de futebol ou estrela das televisões sonha passar a lua-de-mel), também ele construído numa plataforma artificial sobre o mar - parece que é uma espécie de desígnio nacional ou marca-de-água arquitectónica - e que pretende ser um dos locais mais recomendáveis do mundo para a conclusão de negócios inter-planetários. Negócios e jogos de ténis, pelo menos a crer nas imagens de um encontro entre o ex-toxicodependente André Agassi e o suíço Roger Federer, mantido no heliporto do hotel, a muitos metros de altura e sem o contributo dos tradicionais apanha-bolas, todos eles possivelmente mortos logo no final do primeiro ‘set'. Na plateia (isto é, na praia que está por detrás desta tralha toda) o cenário mantém-se: arranha-céus improváveis e super-espelhados - com o devido destaque para o Burj Dubai, o edifício mais alto do mundo, com 818 metros mas sem campo de ténis nas nuvens - ‘resorts' de luxo a fazerem lembrar estâncias turísticas dos Alpes suíços, ruas para a classe média/alta copiadas de Hollywood e por aí. Mohammed bin Rashid Al Maktoum, cuja família controla o Dubai desde 1833, parece ter sido o mentor, pensador e propulsor disto tudo. Como o petróleo não abunda por ali, Mohammed decidiu que o seu emirado devia atirar-se para a frente e apostar noutra coisa qualquer. Apostou nos serviços: nos de luxo, nos do turismo, nos que devem ser colocados à disposição dos homens que concluem negócios inter-planetários, nos que precisam as empresas que lá instalaram centros de qualquer coisa e nos que normalmente nascem a jusante destes. Conclusão: o emirado do Dubai não produz, ou quase não produz, nada que dure mais que umas horas. A estratégia de Mohammed foi um sucesso: a cidade do Dubai transformou-se num dos maiores centros de negócios do mundo - seguramente um dos dois maiores da região, juntamente com Abu Dhabi; numa atracção turística que nenhum outro país da região pode igualar; e numa Meca (a verdadeira não fica muito longe dali) do comércio das grandes marcas internacionais. Só não se transformou num potentado da cultura mundial, o que era também um dos desígnios de Mohammed, dado que ninguém conseguiu ainda provar que muitos metros cúbicos de tijolos tenham uma correspondência directo e biunívoca com qualidade do conhecimento.
Empréstimos internacionais
Como não podia deixar de ser, tudo aquilo foi construído à custa de vultuosos empréstimos internacionais, uma vez que a partir do início do milénio abundava dinheiro em fundos, bancos, caixas económicas e instituições afins. O problema não era falta de liquidez, mas exactamente o contrário: o excesso de dinheiro nos alforges das instituições - como afirmava qualquer CEO de qualquer ‘private-equity' de qualquer praça financeira ao longo de uma série de anos. Por isso, parte muito substancial desse excesso planetário foi parar às margens do Golfo Pérsico e transformado em imobiliário. O rebentamento da bolha imobiliária norte-americana, a que se seguiu a explosão de muitas outras bolhas sucedâneas, fazia temer o pior. Paradoxalmente, o pior não aconteceu de imediato - o que fez com que o mundo se convencesse que o imobiliário de super-luxo instalado no Dubai era seguro como um granito antigo. Mas afinal não era: o grupo Dubai World, que vive sob o controlo do governo, pediu um adiamento até, na hipótese menos sombria, Maio de 2010 do pagamento das amortizações das suas emissões obrigacionistas de 40 mil milhões de euros. Ora, 40 mil milhões de euros é um ror de dinheiro: é quase 25% do PIB português e dava para comprar de uma assentada um monte de países por esse planeta fora. Pior: os 40 mil milhões do empréstimo obrigacionista serviam para alavancar um endividamento total da ordem dos 55 mil milhões de euros. O mundo ficou de boca à banda. E a pergunta que mais se ouvia nos mercados internacionais era um disparate do género: "Mas então as dívidas do Dubai não estão cobertas pela produção de petróleo de Abu Dhabi?" Pois não estão, não senhor.
Segundo relatos posteriores à eclosão do princípio da catástrofe no Dubai, a coisa estava à vista de toda a gente que quisesse ver: os super-ricos que compraram casas no emirado - e que devem ter pago uma média de cinco mil euros por tijolo, fora as tintas - estavam desde 2008 em debandada geral, devido à terrível tendência democrática da crise do ‘subprime'. Segundo esses relatos, o aeroporto da cidade faz agora lembrar um parque de estacionamento para onde são rebocados automóveis abandonados: carros de luxo são deixados em qualquer esquina porque não há ninguém que os queira comprar e já só há tempo para apanhar os aviões de volta à vidinha de todos os dias nos países de origem. Paralelamente, os escritórios começam a ser abandonados e a transformar a cidade numa espécie de enorme cadáver defeituoso e sem luz nocturna. Em cascata, as imobiliárias que vendiam as casas de sonho que preenchiam os sonhos do novo-riquismo endinheirado deixaram de ter listas de espera de futuros compradores e passaram a não conseguir colocá-las no mercado. Os preços por metro quadrado vieram por ali abaixo. Os negócios com ganhos de 30% passaram a ser uma miragem longínqua. E o Dubai está prestes a transformar-se numa história mal contada.
Mas afinal, um país pode fechar?
Neste quadro, a pergunta é: pode uma história mal contada acabar mal? Ou, por outras palavras: o Dubai vai fechar? A resposta é ‘não'. Se os países com uma dívida externa superior ao PIB tivessem fechado para obras, há muito que não existia mundo - no que se inclui o nosso país, mas principalmente os Estados Unidos da América que aparentam continuar a ser o motor do desenvolvimento mundial.No caso português - que poderá ter uma dívida externa total acima dos 300 mil milhões de euros (a soma entre a dívida líquida e a dívida bancária) - o problema coloca-se ainda menos: levados ao colo pelo simpático grupo de países que, fazendo parte da União Europeia, compõem o ‘port folio' da Zona Euro, Portugal está à vontade: os portugueses podem continuar a gastar dinheiro a rodos em produtos oriundos do estrangeiro e os governos podem continuar a lançar obras públicas com incorporações nacionais ridículas, que nada de substancialmente mau nos vai acontecer. A não ser, claro está, no que se refere ao nível de vida dos nossos filhos; mas isso, aparentemente, é um problema que eles hão-de acabar por saber resolver (emigrando todos, por exemplo). Entretanto, as ondas de choque provocadas no Dubai vão chegando a Portugal: com os investidores internacionais em situação de verdadeiro ‘stress' e a procurarem a todo o transe entrincheirarem-se - um pouco tardiamente - em investimentos mais seguros, as emissões de dívida do Estado português e das empresas nacionais têm que suportar taxas de juro a subir, como tem vindo a suceder de há uma semana a esta parte, e em favor de países que apresentam risco mais baixo e contas mais sólidas, como é o caso da Alemanha. A história está, aliás, cheia de exemplos de países ou regiões que entraram em colapso e recuperaram. O último exemplo foi o da Islândia, a primeira vítima mortal do ‘subprime' que, por um endividamento excessivo à banca e pela acumulação de crédito mal parado de proporções gigantescas - que levaram o terceiro maior banco do país, o Glitnir, a ser nacionalizado depois de ter declarado falência técnica - foi à ruína. E de nada valeu a garantia estatal sobre os depósitos: instalou-se o pânico junto de investidores e depositantes, e a corrida aos depósitos fez o resto.
A Argentina também sofreu as agruras da insolvência geral do Estado quando entrou em total colapso por causa da sua dívida externa. O país, instalado no mais abandonado dos continentes, demorou muito tempo a sair da crise, não sendo ela alheia ao facto de, ainda há uma década, 56% da sua população estar no limiar da pobreza e o desemprego estar acima dos 30%. Um pouco mais acima, em Cuba, a bancarrota deu-se no início dos anos de 1960, quando Fidel Castro e Ernesto Guevara expulsaram os principais financiadores da ilha - especuladores a precisar de lavar dinheiro, traficantes de droga e jogadores de casino, entre outros alegres foliões - e ainda não era claro que o horror do Ocidente perante a revolução armada acabaria que atirar os cubanos para os braços tentaculares do antigo bloco comunista. A própria Rússia no momento em que se transformava em União Soviética (1917) estava em falência técnica e o governo liderado por Lenine teve que se valer da produção de rublos que não valiam sequer o custo do papel em que estavam impressos para pagar as importações e custear as várias frentes de batalha interna e externa em que estava envolvido. Até a Espanha, que digeriu tão mal os ventos do ‘suprime', não escapou em tempos aos apertos da falência: em 1588, Filipe II organizou aquilo a que chamou a Invencível Armada (onde também havia barcos e marinheiros portugueses, uma vez que por essa altura e até 1640 a Península Ibérica estava livre de fronteiras) para acabar de vez com a guerra contra Inglaterra e apoderar-se do domínio dos mares; esta estratégia militar anterior mas concomitante à estratégia comercial que se lhe seguiria correu mal: a armada era tão invencível que foi toda ao fundo em menos de um fósforo, e com ela os sonhos de grandeza planetária do monarca. Mas no fundo dos mares não ficavam apenas os navios e os seus marinheiros: perdia-se também nas ondas um instrumento de financiamento do país, que ainda por cima tinha custado uma fortuna. Os anos seguintes foram de desesperado aperto.
Mas muito mais que qualquer problema económico, são as questões políticas que podem acabar com a existência de um país. Dois exemplos muito próximos provam isso mesmo. AJugoslávia do Marechal Tito, uma das construções mais impressionantes do pós-II Guerra Mundial, desmanchou-se como uma construção sem alicerces em meia dúzia de meses, como se anos de cimento atirado para cima de um problema não tivessem produzido qualquer efeito. Mas o caso mais extraordinário - e com certeza o mais dramático para o seu povo - é o da Polónia, um país que já deixou de existir tantas vezes, apesar de verdadeiramente isso nunca ter chegado a acontecer, que a sua história parece mais uma sucessão de reinícios que uma linha contínua inteligível. Com tal envolvimento histórico e com a argamassa da globalização, é fortemente de supor que o Dubai não vai fechar. Mas o que é mais que certo é que o seu prestígio internacional ficou fortemente abalado e nenhum investidor minimamente atento vai voltar nos próximos anos a arriscar a sua liquidez num mercado que deu mostras de tão fraca sustentabilidade. A não ser que Mohammed bin Rashid Al Maktoum encontre uma fonte segura de petróleo. E isso pode bem suceder mesmo que essa fonte de petróleo não seja mais que uma bifurcação de um oleoduto de Abu Dhabi" (por António Freitas de Sousa, do Diário Económico)

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