O jornalista e diretor-adjunto do “Polígrafo” descreve a forma como a mentira se banalizou na política e como André Ventura se tem servido dela. Este texto é uma versão reduzida de um dos capítulos do seu livro“Os Políticos São Todos Iguais!”, que é apresentado esta semana. O ‘mundo de ontem’ estremeceu em janeiro de 2017, quando Kellyanne Conway, então conselheira do recém‑empossado novo Presidente dos EUA, Donald Trump, fundou o conceito de “factos alternativos” para justificar uma falsidade grosseira do porta‑voz da Casa Branca, Sean Spicer. Já havia sofrido múltiplos abalos durante a campanha eleitoral, sob o fluxo contínuo de mentiras expressas pelo insólito candidato do Partido Republicano (além da torrente de fake news nas redes sociais), mas foi no período de exercício do poder que se consolidou o domínio da política pós‑verdade.
Nessa época de metamorfose, André Ventura ainda interpretava a personagem que “argumentou contra o securitarismo, contra o populismo penal, contra os políticos que procuram ganhar votos com o acicatar dos medos e dos preconceitos” (tese de doutoramento), ou defendeu que “países como Portugal e a Irlanda não devem esquecer o seu passado e devem acolher o maior número de migrantes” (artigo de opinião). Aliás, em março de 2017, ao intervir na apresentação do livro “O Efeito Trump e o Brexit”, de Jorge Castela (um dos amigos que o iriam ajudar a criar o partido Chega), Ventura criticou os métodos de Trump, nomeadamente os ataques à imprensa, a comunicação direta pelas redes sociais (para se furtar ao escrutínio jornalístico) e a difusão de mentiras e fake news.
“Hoje, tornou‑se uma espécie de gíria popular — ou uma certa elite intelectual — atacar a comunicação social. Digo isto completamente livre nesta matéria. Nós, em Portugal, temos tido a sorte de ter meios de comunicação social capazes de tocar com o dedo na ferida. […] Temos que ter alguma cautela quando apontamos o dedo à comunicação social”, afirmou o então professor universitário e comentador de futebol, pouco tempo antes de ser anunciado como candidato do PSD nas eleições para a Câmara Municipal de Loures.
“Quando perguntam ao Presidente dos EUA (Trump) porque é que ele usa o Twitter, é porque dá um poder enorme não haver nenhuma espécie de intermediário. Eu escrevo o que quiser. Ninguém me faz a pergunta, sequer”, explicou Ventura. “Na verdade, por trás desta perceção está a lógica de os intervenientes políticos se quererem furtar aos intermediários que fazem perguntas. É incómodo. É muito mais fácil (recorrer às redes sociais). E é por isso que se utiliza isto. […] É esta a lógica das fake news, que são perniciosas, porque nos levam à negação e à defesa permanente. Mas, sobretudo, porque são capazes de convencer em períodos de grande turbulência noticiosa.”
Em 91 dos seus primeiros 100 dias na Casa Branca, de acordo com uma contagem do jornal “The New York Times”, o Presidente Trump proferiu pelo menos uma alegação falsa ou enganadora. No final do mandato de quatro anos registava‑se um total de 30.573 alegações falsas ou enganadoras de Trump, informou o jornal “The Washington Post” em janeiro de 2021. Por exemplo, no debate televisivo frente à adversária Kamala Harris, em 10 de setembro, Trump amplificou uma alegação falsa (propagada de forma viral nas redes sociais) sobre imigrantes haitianos que, em Springfield, Ohio, estariam a roubar animais de estimação para se alimentarem. “Eles estão a comer os cães, eles estão a comer os gatos. Eles estão a comer os animais de estimação das pessoas que lá vivem”, acusou.
Logo no dia seguinte, um vice‑presidente do Chega apresentou nas redes sociais um conjunto de ‘provas’ (sobretudo vídeos falsos ou descontextualizados) da acusação de Trump, estendendo o suposto fenómeno a Portugal (entre outros países europeus) e garantindo: “Os imigrantes andam mesmo a comer os nossos animais de companhia! Aqui deixo as provas para quem tiver estômago para ver! Nojento! Isto já foi longe demais! [sic] É preciso remigrar estes criminosos, doa a quem doer!” Mais uma vez está aqui em funcionamento o sistema de vasos comunicantes (mediante conteúdos tantas vezes perdidos na tradução), assim como a mimetização de Trump e outras referências internacionais desta espécie de populismo pós‑moderno.