Este sábado (a entrevista foi feita no dia em que se realizou o Sporting-Marítimo, 3-1) o
Sporting recebeu o Marítimo (3-1) e frente a frente estiveram os dois
treinadores mais velhos da Liga: Jorge Jesus tem 61 anos, Nelo Vingada tem 64.
O primeiro nunca saiu de Portugal, o segundo treinou em “oito países” e de
todos eles trouxe uma “história para contar”. Esta é a história dele.
Li uma entrevista
sua, feita há quatro anos, em que dizia que treinaria mais três ou quatro anos.
Quando dei essa
entrevista estava a treinar o Dailan Shide, na China, em 2012, e nessa altura
tinha mesmo ideia de que, após o Dailan, ia deixar isto. Tinha um contrato
longo, um ótimo salário (o melhor que já recebi), mas as coisas correram mal.
Houve um escândalo com o mayor da cidade, que levou o presidente do clube a ser
preso. Acabou por ser encontrado morto na prisão, dizem que teve um ataque
cardíaco... O clube entrou em insolvência em 2013 e a liga chinesa não aceitou
a inscrição, não recebi quatro meses de ordenado, e saí. Fui para a seleção do
Irão.
Foi a sua segunda
aventura no Irão.
Estive em oito
países e tenho histórias para contar em todos. Logo no começo, em 1996, fui
convidado para ser selecionador da Arábia Saudita, pela qual me sagrei campeão
da Ásia. Foi um choque, sobretudo para a minha mulher, que sempre me acompanhou
na carreira (para onde eu fui, ela foi também). Vivíamos num condomínio com
piscina à qual só eu podia ir, porque as mulheres não podem mostrar o corpo. Ia
bem preparado para aquilo, porque estivera antes na embaixada a saber tudo
sobre a cultura. O príncipe da Arábia Saudita disse-me: “Só te falta casares
com quatro mulheres para seres um árabe a sério. Se quiseres, eu providencio.”
Comer com as mãos, o borrego, jogos cujos intervalos duravam meia hora porque
coincidia com a hora da reza — jogadores no balneário, equipados mas descalços,
virados para Meca e a rezar. O segundo país onde estive foi os Emirados Árabes
Unidos, por poucochinho tempo. Não foi fácil. Os jogadores eram polícias,
guardas e militares. Havia treinos em que só apareciam sete ou oito.
Sete ou oito?
A não ser que
houvesse jogo no estrangeiro, aí apareciam todos [risos]. Onde é que eu ia?
Emirados Árabes
Unidos.
Isso. Depois,
Egito: pobreza e sujidade. Treinei o Zamalek, fui campeão sem derrotas.
Almoçava ou jantava com o Manuel José e as nossas mulheres, grandes
bacalhoadas, e aquilo fazia uma confusão enorme nos egípcios: dois treinadores
de clubes rivais a comerem juntos. Olhe, foi lá que uma das minhas filhas
conheceu o marido, o Mohammed, egípcio. Ele estava a tirar o curso de
hotelaria, nós vivíamos num hotel, o Meridien e... bom, nestas coisas, o amor
acontece, não é? Casaram em Portugal, um casamento católico, com um diácono e
não um padre, e têm uma filha, a Leonor. O casamento teve repercussão nos
jornais: um egípcio a casar com a filha do português do Zamalek. O Egito estará
sempre no meu coração. Ao contrário de Marrocos.
Porquê?
Foi a única vez em
que assinei e pensei: “Hmmm, isto cheira-me a esturro.” Trocas e baldrocas, e
tive de pagar €20 ou €30 mil para sair. A minha sorte é que a federação da
Jordânia também andava a falar comigo. Portanto, não fiquei muito tempo
desempregado. Está a apanhar tudo?
Estou. Que tal foi
a Jordânia?
Oh pá,
espetacular. Devo ter ido umas dez vezes a Petra. Fantástico. E tomar banho no
Mar Morto? Ui. Conheci o príncipe [Ali bin Hussein] que se candidatou
recentemente à FIFA e também estive três ou quatro vezes com o Rei da Jordânia,
uma delas com Cavaco Silva, que esteve lá. Eu já o conhecia, quando ele me
tinha condecorado por causa do Mundial de juniores de Lisboa, e até tinha uma
relação cordial com ele, mesmo sabendo ele que eu sou do PS. Participei nos
Estados Gerais, com o Guterres.
Continue,
continue...
OK. O país
seguinte foi o Irão, em 2009. Teerão é lindíssima, e aquela ideia do papão
sinistro é um exagero. Há muitas restrições e, obviamente, eu também estava
numa situação privilegiada, como treinador do Persepolis. Desportivamente, foi
muito difícil: os campos tinham a qualidade dos nossos campos da 3ª divisão. E
a assunção da responsabilidade é treta.
E nem um copinho
podia beber.
Tinha duas
hipóteses: ia ao mercado negro ou aproveitava as receções nas embaixadas.
Nunca lhe venderam
nada?
Eles chegavam-se
ao pé de mim, na rua, e diziam: “Coach, coach Vingada, alcohol?” Nunca aceitei.
Sabia lá eu se eram polícias disfarçados. Lembrei-me agora de uma coisa
caricata.
Então?
Fomos jogar ao
Qatar um jogo para cumprir calendário. Decidi levar jogadores menos rodados e
perdemos por 4-1. Quando cheguei a Teerão, estava o escândalo montado. Mil
pessoas, mil pessoas!, no centro de estágios do clube a insultarem e a
intimidarem. O capitão veio ter comigo e perguntou-me: “Quer dar o treino?” E
eu: “Nestas condições, não.” E ele: “Mas quer dar o treino ou não?” E eu: “Se
isto melhorar...” O capitão fez uma chamada e chegaram várias carrinhas com uns
tipos lá dentro, com ar de gorilas. A confusão acabou ali.
Estamos quase a
voltar à China.
Falta a Coreia do
Sul, o melhor lugar onde estive. Ficámos em Guri, longe de Seul como a Amadora
é de Lisboa. Fui campeão e ganhei a Taça da Liga, com o FC Seul. Eles são
subservientes, olham para o treinador como um líder. A relação é de distanciamento.
E eu, português, cheguei lá e comecei a anotar as datas de nascimento dos
filhos, das mulheres, a convidá-los para festas em casa e tal. Acharam aquilo
estranho. Estava lá o Ricardo Esteves [ex-futebolista que passou pelo Benfica],
que já era casado com a minha outra filha, um brasileiro e um montenegrino; o
resto, só coreanos e quase nenhum falava inglês. Saí por incompatibilidades e
fui para a China fazer o contrato da minha vida: condomínio de luxo, com tudo,
ginásio, campo de ténis, pequeno-almoço, tudo incluído.
E o trabalho em
Portugal?
Orgulho enorme de
ter conquistado dois Mundiais sub-20, em Riade e em Lisboa. Cá, com 130 mil
pessoas no estádio, foi inesquecível. Também gostei de trabalhar na Académica e
no Marítimo, e, obviamente, aquele quarto lugar nos JO de Atlanta, em 96.
Nessa seleção
estava o Porfírio.
Sabe que a mãe
dele, que é ginecologista, é médica das minhas filhas? O Porfírio era
completamente fora... Lembro-me de ser acordado às tantas da manhã, no Canadá,
pelo gerente do hotel: “Houve um jogador que descobriu as chaves do armazém,
roubou um carrinho de golfe, e foi para um bar aqui perto. Estacionou o
carrinho à porta.” Tinha cada uma...
Qual o melhor
jogador que treinou?
O Dani [hoje,
comentador da TVi24]. Tinha tudo: talento, cultura, inteligência, velocidade.
Fazia o que queria com uma bola. No Mundial do Qatar de 1995, sub-20, ficámos
em 3º lugar, e os diretores técnicos da FIFA vieram ter comigo e disseram-me:
“Só houve um jogador melhor do que o Dani, com esta idade, nas fases finais de
Mundiais — o Maradona”. Se o Dani tivesse a mentalidade do Ronaldo e o rigor do
Figo, a história podia ter sido outra.
E o Nelo, como foi
como jogador?
Não era mauzinho.
Joguei no Belenenses e no Atlético, mas comecei a estudar muito cedo para ser
treinador e passei para o banco aos 27 anos. Portanto, não é que seja muito
velho, comecei foi muito cedo [risos].
Não sente o
preconceito da idade?
Passei por dois
preconceitos. Eu fui dos primeiros (o primeiro foi o Jesualdo Ferreira) a sair das
universidades para ser treinador de futebol. E resultou. Cheguei a ser
professor do Mourinho e do Peseiro, dois dos meus melhores alunos. Conheço o
Mourinho dos tempos em que era adjunto do pai dele, o Félix. Depois, quanto à
velhice, o Ranieri tem a minha idade, teve aqueles resultados horríveis na
Grécia [perdeu com as ilhas Faroé], e hoje lidera com o Leicester. Não há uma
regra. Não estou velho.
Anda nisto por
gosto?
Não é por
dinheiro. Não sou rico, mas estou confortável. Nunca cometi loucuras, talvez a
única foi ter pago a pronto um Mercedes. Foram €50 mil euros e ainda hoje é o
meu carro. Tem 14 anos. Paguei, para ir com um carro novo ao casamento da minha
filha [risos]. Sigo a máxima da minha mãe, que era costureira, tinha umas mãos
fantásticas: “O dinheiro não é de quem o ganha, mas de quem o poupa.”
Começou a treinar
novo. Não era difícil ter autoridade?
Tinha uma
vantagem, porque tinha sido jogador. Ou seja, muitas vezes, quando faltava um
jogador para fazer equipa nos treinos, eu entrava lá para dentro. Ainda fiz
umas quantas ‘cuecas’ a craques [risos].
Jogou contra o
Jesus?
Tenho ideia de que
ele era um jogador habilidoso mas muito irreverente. Aliás, ainda hoje é
irreverente, não é? Mas, fora de campo, é muito diferente do que é dentro do campo.
O jogo mexe connosco (texto do jornalista do Expresso, Pedro Candeias)
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