Li no Publico num texto da
jornalista Inês Nabais, que “em 1940, pouco tempo depois de entrar na Segunda
Guerra Mundial ao lado da Alemanha nazi, o ditador italiano Benito Mussolini
dava ordens para que se iniciasse a construção de um bunker nos jardins da
Villa Torlonia, junto ao palácio que entre 1922 e 1943 usou como residência
oficial – um bunker que, a julgar pelas eufóricas declarações de que
enfrentaria as bombas aliadas sozinho na varanda, não estaria propriamente
disposto a frequentar. A partir da próxima sexta-feira, dia 31, esse abrigo,
que nos anos seguintes Mussolini mandaria ligar a dois outros bunkers
contíguos, passará estar aberto aos fins-de-semana para visitas guiadas. É
apenas o primeiro passo para converter a Villa Torlonia num local de referência
para a reflexão sobre o período mais negro do século XX italiano: por decisão
unânime da Fondazione Museo della Shoah, aqui será construído também, a partir
de Janeiro de 2015, o primeiro museu do país inteiramente dedicado ao
Holocausto. "Acreditamos realmente
que o que aconteceu em Itália no último século não pode repetir-se nunca. Por
isso é tão importante que hoje aqui estejamos a mostrar que queremos educar os
nossos filhos no espírito de conceitos como a liberdade e a igualdade",
afirmou o presidente da Câmara de Roma, citado pela BBC, na visita inaugural
deste fim-de-semana. Não foram declarações muito diferentes das que fez há uma
quinzena, depois de saber que a fundação responsável pela instalação do Museo
della Shoah escolheu o mesmo parque da cidade, em cujo extremo noroeste foram
descobertas as catacumbas de um cemitério judaico da época romana, para ali
contar a história da participação italiana na maior operação de genocídio da
história europeia: "Roma terá finalmente um lugar para recordar a tragédia
das deportações e do extermínio dos judeus e para transmitir às futuras
gerações o valor da memória como antídoto contra todas as formas de
intolerância e de ódio", disse então Ignazio Marino. Mandado edificar junto à Villa
Torlonia para protecção da família do ditador, o bunker que agora abrirá aos
visitantes é apenas um dos 12 que terão sido construídos em Roma durante a
Segunda Guerra Mundial – o último dos quais debaixo do Palazzo Venezia, onde Mussolini
teve o seu escritório (e a varanda a partir da qual fez os seus mais célebres
discursos, actos fundadores do fascismo italiano). O estado em que foi encontrado
não permite determinar se alguma vez chegou a ser utilizado, embora por trás
das suas pesadas portas de metal tenham sido descobertas divisões equipadas com
telefones, capacetes e máscaras anti-gás, além de um WC rudimentar. Não se
trata, no entanto, de uma construção de raiz: o bunker de Mussolini resulta do
reaproveitamento da antiga adega dos Torlonia, a família de aristocratas que em
1797 adquiriu a então Villa Colonna e a remodelou sucessivamente para a colocar
à altura das melhores residências nobres de Roma, dotando-a de um dos raros
jardins ingleses da cidade. Quando tomou o complexo como residência oficial, em
1922, o Duce foi menos ambicioso do que os anteriores proprietários e não viu
necessidade de o submeter a grandes alterações: reservou o palácio para si e
para a família, destinando o anexo medieval e a estufa a reuniões sociais,
festas e sessões de cinema. No limite, o seu único gesto revolucionário na
Villa Torlonia foi a conversão do campo de torneios em court de ténis – anos
mais tarde, a sua mulher, Rachele, quis cultivar legumes no jardim, como
contribuição para o esforço de guerra.
Nostalgia
Ocupada pelas tropas do
comando anglo-americano em Julho de 1944, e adquirida 33 anos mais tarde pelo
município de Roma, que a restaurou e adaptou a museu (acolhe actualmente uma
colecção importante de obras do período da Escola Romana, o movimento artístico
que floresceu na capital italiana no período entreguerras), a Villa Torlonia
nunca se tornou um lugar de peregrinação dos nostálgicos de Mussolini. Mas a
memória do ditador continua particularmente viva em Predappio, onde nasceu a 29
de Julho de 1883. Aberta a visitantes, a casa
onde passou a infância é actualmente uma galeria de exposições temporárias (uma
das mais recentes foi justamente dedicada à juventude do Duce); o jazigo de
família onde está enterrado, no cemitério local, recebe cerca de 100 mil
visitantes por ano. E embora o actual presidente da câmara, Giorgio
Frassinetti, esteja particularmente empenhado em fazer descolar Predappio da má
fama de local de peregrinação para neofascistas, um museu bastante benevolente
em relação ao legado de Mussolini, La Casa dei Ricordi, mantém-se aberto na
casa de Verão da família desde 2001. Ali é possível ver a cama onde dormiu, o
violino que tocou, e até o terço que fazia questão de ter consigo nos momentos
mais difíceis.
Reeleito este ano, Frassinetti
mantém o projecto não exactamente consensual de transformar a Casa del Fascio,
construída em 1930 para receber visitantes e glorificar Mussolini, num museu
dedicado à história do fascismo italiano: "Predappio poderia assim
tornar-se num lugar de reflexão, o que resgataria a cidade daqueles que querem
usá-la para fins discutíveis", disse o autarca ao jornal britânico The
Independent em Abril deste ano.
Morte e sobrevivência
Entretanto, em Roma, a maioria
dos que usam a Villa Torlonia para passear ou fazer piqueniques parece
absolutamente indiferente ao facto de durante mais de 20 anos aqueles jardins
terem sido o recreio particular de uma das figuras mais sinistras do passado
recente de Itália. A partir de Janeiro, quando se iniciarem as obras de
construção do futuro Museu della Shoah, será difícil ignorar que talvez tenham
sido ponderadas ali algumas das mais terríveis decisões do ditador italiano, a
começar pelas leis anti-semitas de 1938. Embora pretenda documentar
todo o processo do Holocausto nazi, o novo museu dedicará uma especial atenção
ao período que decorre entre a radical alteração legislativa de 1938, que
limita severamente os direitos dos judeus italianos, e as deportações para
campos de concentração e de extermínio organizadas entre 1943 e 1944. É uma
história de morte, que, de resto, faz ecoar a memória antiga dos judeus de Roma
evocada pelo cemitério subterrâneo descoberto em 1919 nos jardins da Villa
Torlonia. Mas também será, garante a fundação que está por trás do museu, uma história
de sobrevivência”