terça-feira, agosto 28, 2012

Mensalão: Striptease brasileiro

"Um homem que mudou de cara, um milionário que tatuou o logótipo da família nele e nos filhos e um professor primário que comprou apartamentos com dinheiro vivo. O lado negro da era Lula é posto a nu no escândalo do mensalão. O julgamento político do século no Brasil disputa a atenção com a telenovela da noite. Portugal volta a ser referido Obcecada pelo desejo de vingança, Nina deixou tudo para trás. Abandonou a família e o namorado, emigrou e infiltrou-se na mansão da mulher que lhe matara o pai e destruíra a infância. Ao episódio 103 de Avenida Brasil, chega o momento decisivo da história. Mais de 46 milhões de pessoas estiveram coladas ao ecrã naquele serão de 23 de Julho, consagrando a mais recente telenovela da noite da Globo como um estrondoso sucesso de audiências. No entanto, outro assunto conseguiu a proeza de se impor entre os brasileiros nos dias seguintes – pelo menos na internet. O caso do mensalão é o tema mais pesquisado no Google, mais mencionado no Twitter e mais comentado nos jornais online daquele país, à frente de Avenida Brasil. O interesse é tal que a Presidente Dilma Rousseff já pediu aos funcionários públicos que se abstenham de acompanhar a novela política e judicial durante o horário de expediente, porque o país «não pode parar». Mas a capital Brasília parou, e muitos argumentistas da Globo gostariam de ter escrito o guião apresentado pelo Ministério Público no arranque, este mês, do julgamento político do século no Brasil. Um ex-revolucionário comunista, amigo pessoal de Fidel e Raúl Castro, leva um operário à Presidência. No Palácio do Planalto, trai eleitores e ideais e monta um extensíssimo e ilegal esquema de compra de votos de deputados a 12 mil euros por mês e por cabeça. José Dirceu, 66 anos, antigo ministro-chefe da Casa Civil, braço-direito do então Presidente Lula da Silva e mentor do mensalão, é o principal arguido num processo que leva 38 pessoas à barra da instância máxima da justiça brasileira, o Supremo Tribunal Federal. São também julgados presidentes de dois partidos, líderes parlamentares, ministros, deputados, banqueiros, empresários e um bispo da IURD. E, assim considera a oposição e imprensa mais hostil, é julgado o legado político de Lula.
Carrinhas cheias de dinheiro
O mensalão, assim chamado por causa das mesadas atribuídas aos legisladores corruptos que aprovavam diplomas do Governo minoritário do Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula, foi desvendado em Maio de 2005 através de uma reportagem da revista Veja, que conseguiu filmar um dos integrantes da rede a receber um maço de notas de um falso empresário. Em Junho desse ano, um dos principais implicados, Roberto Jefferson, presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), dá com a língua nos dentes para não cair sozinho. Numa entrevista à Folha de São Paulo, revela a extensão do esquema e denuncia Dirceu, o tesoureiro do PT Delúbio Soares e Marcos Valério, publicitário ligado ao Governo. Segundo a acusação do Ministério Público, o mensalão envolveu o movimento de tamanha quantidade de dinheiro vivo que o seu transporte exigiu a utilização de carrinhas blindadas e o suborno de agentes policiais. As verbas, que provinham de cofres públicos e de financiadores particulares, eram camufladas pelo departamento financeiro da rede, através de empresas-fantasma e contas em paraísos fiscais como a Madeira. Outros membros da rede estavam encarregues de angariar novos financiadores para o esquema e, à boleia, para cofres partidários e particulares. É neste âmbito que, segundo o Ministério Público, Marcos Valério e o seu associado Rogério Tolentino viajaram para Portugal em 2004. Em Lisboa, reuniram-se com António Mexia, então ministro das Obras Públicas, Miguel Horta e Costa, à data presidente da Portugal Telecom, e Ricardo Salgado, presidente do Banco Espírito Santo. Em cima da mesa teria estado a intervenção do Governo de Lula na venda da Telemig à Portugal Telecom. Nenhum acto ilícito foi apontado, mas Mexia, Horta e Costa e Salgado tiveram de depor perante a justiça brasileira, a partir de Lisboa, depois de terem sido arrolados como testemunhas pelos advogados de Dirceu, Valério e Jefferson.
Ligação a Portugal
A ideia da viagem a Lisboa terá partido de Dirceu, cuja longa e atribulada história de vida também tem capítulos escritos em solo luso. Nascido em 1946 em Minas Gerais, foi um histórico da resistência à ditadura militar. Líder estudantil, foi detido em 1968 até ser trocado pelo embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, raptado pela esquerda radical. Partiu para o exílio em Cuba, onde se tornou agente de Fidel Castro. Em 1974, regressou ao Brasil sob um nome falso e uma cara nova – tinha feito uma plástica em Havana. Chegou a casar e a constituir família sem que esta soubesse que Carlos de Melo era, na verdade, Dirceu. A amnistia geral de 1979 libertou-o da vida dupla. Regressou à luta política, foi um dos fundadores do PT e director da campanha que levou Lula ao poder em 2002. Após a demissão em 2005, Dirceu abraçou a tempo inteiro aquilo que lhe apontavam no partido e no poder – o lobismo. Ex-comunista, hoje assumidamente «capitalista», é dono de três empresas de consultoria e advocacia e continua a exercer enorme influência em Brasília. Os negócios internacionais de Dirceu estendem-se a Cuba, onde devido à proximidade com os irmãos Castro está na linha de partida numa eventual abertura do país comunista a uma economia de mercado. No México, conta como cliente o homem mais rico do mundo, Carlos Slim, magnata das telecomunicações. Mantém contactos nas altas esferas políticas e empresariais de países como França, Colômbia, Venezuela e Peru. Dirceu continua também a fazer a ponte entre Portugal e Brasil. Terá desempenhado um importante papel na troca da Vivo pela Oi para a Portugal Telecom e é apontada a sua intervenção numa suposta sondagem da Band à RTP. Entre os seus amigos portugueses, segundo a imprensa deste lado do Atlântico, está o actual ministro da Presidência Miguel Relvas e o patrão da Ongoing Nuno Vasconcellos, que por sua vez emprega a namorada de Dirceu na filial daquela empresa em São Paulo. Portugal é ainda um destino frequente de férias para Dirceu, amante da cozinha lusa. Destino de um novo exílio? O antigo número dois do Governo não afasta a possibilidade. «Para quem já viveu o que eu vivi, sair daqui clandestino de novo não custa nada», terá dito num jantar com amigos, entre eles o actual ministro brasileiro da Justiça José Eduardo Cardozo, segundo a Veja.
Desordem no tribunal
A declaração polémica de Dirceu, a acusar o risco de fuga do principal réu do processo, indicia a expectativa de uma condenação. Mas essa noção não é partilhada pela generalidade dos brasileiros que acompanham o julgamento através dos cerca de 500 jornalistas acreditados no Supremo. Uma pesquisa publicada pela Folha de São Paulo indica que 73% dos inquiridos querem ver os réus sentenciados a penas de prisão, mas que apenas 11% acreditam que tal vá acontecer. A história está do lado dos arguidos. O Supremo não tem registo de uma única condenação a pena efectiva. Os únicos seis titulares de cargos políticos condenados pela mais alta instância brasileira escaparam à prisão pela prescrição dos seus crimes ou pela comutação da pena numa sanção simbólica. E algo mais aparenta estar do lado dos arguidos. O julgamento começou sob a sombra de José Antonio Dias Toffoli, um dos treze membros do colectivo de juízes. O magistrado foi advogado do PT, sócio dos defensores de três arguidos, assessor de Dirceu, secretário de Estado do Governo de Lula e é ainda hoje amigo pessoal de vários réus. Para Toffoli, não é nada que determine o seu afastamento do caso. Disposto a defender a posição até às últimas consequências, há poucas semanas envolveu-se numa espectacular troca de insultos com o jornalista de O Globo Ricardo Noblat numa festa em Brasília – onde também estava um advogado de um réu ‘mensaleiro’ e o ex-ministro de Lula e Dilma Nelson Jobim. O afastamento de Toffoli ia ser pedido na primeira sessão do julgamento pelo procurador-geral da República Roberto Gurgel. No entanto, o PGR brasileiro desistiu da iniciativa devido a um incidente que levou a acusações de falta de lealdade entre os membros do colectivo de juízes. O motivo da discórdia foi o requerimento do advogado de defesa Márcio Thomaz Bastos, antigo bastonário e peso-pesado da advocacia brasileira, para a divisão do megaprocesso numa trintena de processos autónomos. Thomaz Bastos, refira-se, foi o ministro da Justiça de Lula que assinou a nomeação de cinco juízes do Supremo. A proposta foi chumbada, mas chegou para abalar o julgamento. Ricardo Lewandowski, juiz revisor do processo, apontado pela imprensa como outro magistrado próximo dos arguidos, votou vencido a favor de Thomaz Bastos, levando mais de duas horas a defender a sua posição. Como resultado, e num julgamento que decorre em contra-relógio, o depoimento de Gurgel teve de ser adiado para a sessão seguinte. Alterado o calendário, ficou em causa o direito de voto do juiz Cezar Peluso, magistrado que terá de deixar o tribunal a 3 de Setembro, dia em que completa 70 anos e é aposentado compulsoriamente. Peluso, que será favorável à condenação dos réus, pondera antecipar a declaração de voto, mas teme-se que tal desencadeie novos incidentes processuais.
O aparente acto de sabotagem de Lewandowski suscitou a ira do magistrado Joaquim Barbosa. «Vossa excelência é revisor há dois anos. Porque é que nunca levantou essa questão nesses dois anos? Parece-me uma deslealdade», criticou o juiz do Supremo, recordando que o colega tinha votado em 2010 contra o desmembramento do processo. Na segunda sessão, o PGR Gurgel desistiu de Toffoli e cingiu-se à leitura da acusação do Ministério Público.
A bailarina e o pastel de Belém
A defesa dos principais arguidos tem agido de forma concertada, ou não se desse o caso de Thomaz Bastos ter recomendado dez dos advogados dos réus mensaleiros. A linha mestra de argumentação é a de que não houve «mensalão» – ou seja, de que não houve compra de deputados. Houve, quando muito, uso indevido de fundos não contabilizados de campanhas partidárias – uma «caixa dois», ou «saco azul». A diferença é a que separa o crime de corrupção passível de pena de prisão efectiva de um mero delito eleitoral já prescrito. Os advogados disseram ainda que os seus clientes são vítimas de «terrorismo», «caça às bruxas», «código penal nazi» e até de preconceito contra os ‘calvos’ – a cabeça rapada de Marcos Valério, sua nova imagem de marca, é uma homenagem ao filho, vítima de cancro. Já a defesa dos réus suspeitos de integrarem o chamado núcleo financeiro da quadrilha preferiu alegar a ignorância ou mesmo a incompetência dos seus clientes. O advogado de Kátia Rabello, ex-presidente do Banco Rural, um dos instrumentos da suposta rede de corrupção, chegou a argumentar que esta não passava de «uma bailarina que, por uma sucessão de tragédias, assumiu a presidência» da instituição «sem estar vocacionada», através de cunha familiar. Qualquer responsabilidade caberia sim ao vice-presidente do banco, José Augusto Dumont. Só que este, por azar, morreu num acidente de viação em 2004. Quanto a Tolentino, um dos arguidos que procurou financiamento em Portugal, terá apenas feito «turismo remunerado» e comido «pastéis de Belém» em Lisboa, segundo a sua defesa.
E Lula?
À oitava sessão, o delator Jefferson voltou a disparar contra todos os suspeitos – presentes e ausentes. Na segunda-feira, o seu advogado, Luiz Francisco Barbosa, admitiu a existência do mensalão e acusou directamente o ex-Presidente Lula da Silva de ter «ordenado» o pagamento dos deputados. «Não se pode afirmar que o Presidente Lula fosse um pateta, um deficiente, e que sob as suas barbas acontecessem essas tenebrosas transacções. Sim, ele ordenou», afirmou o advogado. Até hoje, Lula sempre negou ter tido conhecimento do esquema de corrupção atribuído a Dirceu, declarando-se «traído» e «magoado». Mas segundo o Estado de São Paulo, que cita um dos juízes do Supremo sem o nomear, Lula só não foi constituído arguido por decisão estratégica do Ministério Público, que temeu que todo o processo caísse por terra perante a popularidade do ex-Presidente. Se Lula fosse julgado na praça pública, a sua absolvição estaria garantida. Segundo uma sondagem divulgada no primeiro dia do julgamento, o antigo Chefe de Estado voltaria a ser eleito Presidente com 70% dos votos. Os estilhaços do processo também passam ao lado de Dilma, que deve a sua ascensão ao poder à morte política de Dirceu, até 2005 um natural sucessor de Lula. A actual Presidente conta com uma taxa de aprovação de 75% que subirá após o anúncio, esta semana, de um gigantesco programa de investimentos que inclui a construção de 5.000 quilómetros de estradas e uma linha de alta velocidade entre São Paulo e o Rio de Janeiro. Aconteça o que acontecer até Setembro, quando for conhecida a sentença do mensalão, poucos esperam que o desfecho do caso altere profundamente o país que perdoou e restaurou José Sarney e Fernando Collor de Mello. Vingança é coisa de novelas” (texto de Pedro Guerreiro, no Sol, com a devida vénia)

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