terça-feira, novembro 03, 2009

Carlos Amaral: “A Autonomia açoriana está a transformar-se numa farsa”

Segundo o Correio dos Açores, "o estatuto de Autonomia actual e as competências da Região tocam em praticamente quase tudo. Daí dizer que a Autonomia não precisa de mais competências, e é verdade no quadro do modelo de separação e garantia. A Autonomia, que parece abarcar mais poderes do que aqueles que detêm alguns Estados independentes, vem-se degradando gradualmente até se aproximar perigosamente da condição de uma autêntica farsa. Em termos de declaração de interesses diria apenas o óbvio: sou, entre outras coisas, pai de família, católico, sportinguista, micaelense, açoriano, português, ocidental, europeu e, no limite, humano. É neste contexto que me insiro bem como ao trabalho que desenvolvo. Ainda a titulo preambular, gostaria de dizer que a ignorância popular acerca do significado da Autonomia a mim não me espanta nem vos deve espantar porque esta ignorância, ou este desconhecimento, não deve ser distinto daquele que, a nível nacional, se verifica acerca do conceito de soberania ou daquele que a nível nacional, ou até mesmo europeu, se verifica acerca de praticamente qualquer conceito político fundamental. Em meu entender a Autonomia açoriana é enferma de problemas graves, desde logo ao nível do seu enquadramento político e institucional. No entanto, os principais desafios com que a Autonomia se depara não são de natureza estatutária mas de natureza constitucional. Assim, em meu entender, a última revisão estatutária foi, no mínimo, inútil na medida em que passou ao lado daquelas que são as principais necessidades do regime autonómico açoriano. Pela polémica que suscitou tornou-se contraproducente, assumindo um carácter que eu diria quase trágico para os Açores já que em todo este processo a autonomia açoriana foi instrumentalizada e transformada em pião de briga para os poderes políticos nacionais e para os partidos políticos nacionais. Tanto é assim que, em meu entender, para a Autonomia açoriana melhor teria sido o processo de revisão estatutária ter sido travado e retirada a proposta que saiu da Região para a Assembleia da República. Isto conforme tive a oportunidade, em tempo oportuno, de publicar em carta aberta que dirigi, num órgão de comunicação social aqui da Região, ao presidente da Assembleia e o presidente do Governo. Portugal foi pioneiro, a nível europeu, no que diz respeito ao abandono dos princípios medievais de organização social e política e à construção do Estado soberano moderno. Foi este pioneirismo que permitiu que o Estado português se consolidasse muito antes do que qualquer outro. Foi este pioneirismo que permitiu ao nosso país tomar a dianteira no dealbar da modernidade e catapultar o nosso país para a ribalta das relações internacionais ao ponto de se ter tornado uma das duas superpotências dominantes do planeta. O mundo moderno ruiu. No início do processo autonómico, conforme sublinhado pelo professor Jorge Miranda, nós fomos pioneiros, a Autonomia açoriana foi pioneira a nível europeu. E tanto foi pioneira que nós, nos Açores, chegamos a receber visitas de colegas europeus que para cá se deslocaram para estudar as nossas inovações. No entanto, outros países já tomaram a dianteira e ficamos para trás. Ficamos para trás porque a nossa classe política permanece arreigada a conceitos e categorias que são do passado e que já não têm aplicabilidade nos dias de hoje. A ideia moderna de um Estado soberano unitário e de um sistema internacional de Estados soberanos, hoje em dia, não é viável. Antes, tem vindo a ser efectivamente substituída pelas ideias contemporâneas de regionalismo, supra e intra-estatal, e pelas ideias contemporâneas de Autonomia e Subsidiariedade. Autonomias, estas, que são contraditórias da ideia de soberania. A Autonomia enquanto separação No início, na primeira metade do século XX, antes da revolução desencadeada na sequência das duas guerras mundiais, pelo processo de integração europeia, primeiro; e pela globalização, depois; a Autonomia era perspectivada por uma separação, uma retirada de competências ao centro para atribuição às regiões que se queriam autónomas. Foi, assim, que aos construtores do projecto autonómico se apresentaram, fundamentalmente, duas opções: a opção de perspectivar a Região Autónoma como um município em ponto grande ou como um Estado em ponto pequenino. E a luta pela autonomia desencadear-se-ia por um exercício de pressão junto do centro no sentido de captação de cada vez mais competências, culminando com a velha questão, que tanto nos ocupou, do limite da Autonomia. O limite do limite da Autonomia só pode ser a independência, a construção de um Estado soberano. Esta ideia de Autonomia, este modelo de Autonomia que apelido de separação e garantia, ruiu precisamente na segunda metade do século XX com um processo de integração europeia, com a globalização, com a erosão do princípio de soberania, com a erosão do princípio de Estado unitário, contexto em que o modelo de Autonomia, - de separação e garantia -, o que faz é conduzir ao esgotamento da Autonomia. O estatuto de Autonomia actual e as competências da Região tocam em praticamente quase tudo. Daí dizer que a Autonomia não precisa de mais competências, e é verdade no quadro do modelo de separação e garantia. A Autonomia, que parece abarcar mais poderes do que aqueles que detêm alguns Estados independentes, vem-se degradando gradualmente até se aproximar perigosamente da condição de uma autêntica farsa. Autonomia enquanto partilha Olhando para a constituição da República e para o Estatuto, o que é que falta em termos de competências para a Autonomia? Moeda? Mas agora o que temos é o euro e, por isso mesmo, já não é Ponta Delgada como também não é Lisboa. Defesa? A defesa também é a NATO e a ONU. Também não podem ser, em separado e em isolado. Relações internacionais? Mas, até aí, temos o direito inovador da Autonomia açoriana de participação na própria União Europeia, o que nos conduz a um paradoxo: a Região conta com a Autonomia tão marcante e tão forte em termos políticos e eleitorais, e mesmo ao nível económico. Daí que a perplexidade do cientista político seja idêntica à perplexidade do economista - um alto dirigente da União Europeia que nos visitou e me dizia recentemente, em visita aos Açores; mas isto é região ultraperiférica? Isto é uma das regiões mais pobres da União Europeia? É isto?. A crise do Estado soberano é a crise das soberanias e, pelas mesmas razões, é a crise das sub-soberanias ou das mini-soberanias em que, no quadro do modelo de separação e garantia, a Autonomia acaba por desembocar. E é neste contexto, então, que a integração europeia, a globalização nos dias de hoje, exigem uma nova concepção de Autonomia, já não como separação e garantia mas como partilha de poder. A Região, já não como algo que é destacado, retirado do Terreiro do Paço para que aqui se exerça o poder, mas como comunidade de integração, a Autonomia como partilha de poder e como participação. Com a integração europeia, com a globalização, é preciso não perder de vista o jogo do poder, incluindo o poder político que não se desenrola, nem sobretudo, em Ponta Delgada, nem em Angra ou na Horta, nem em Lisboa sequer, mas em Bruxelas e nas demais cidades que são sede de instituições europeias; em Nova Iorque e nas grandes capitais mundiais".

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