domingo, dezembro 28, 2008

Opinião: "Um Estatuto controverso"

"A Constituição de 1976, respondendo às reivindicações veementes das populações dos Açores e da Madeira, garantiu às ilhas portuguesas do Atlântico uma ampla autonomia, não apenas administrativa mas também política, de legislação e de governo. Ao longo de mais de três décadas a autonomia insular consolidou-se e hoje é um verdadeiro pilar estruturante do nosso Estado democrático e da própria configuração de Portugal como país independente no concerto das nações.
evolução do regime autonómico não tem sido sempre pacífica e consensual. O início foi mesmo particularmente tempestuoso… Mas o certo é que a pouco e pouco se conseguiu assentar ideias sobre o conteúdo e os modos de funcionamento da autonomia, bem como sobre o relacionamento das instituições ilhoas de governo próprio com o órgãos de soberania da República. A questão dos limites da autonomia ressurge de vez em quando nos meios políticos lisboetas. É que o novo regime tem sido sempre reafirmado e ampliado nas sucessivas revisões constitucionais, tornando evidente a sua dinâmica progressiva.
O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, há pouco reconfirmado pela Assembleia da República, em terceira leitura, após dois vetos presidenciais, um por inconstitucionalidade e outro político, trouxe novamente à ribalta a problemática política insular.
Projectada para ser uma oportunidade de consagração da autonomia açoriana — falou-se mesmo, com euforia, de uma refundação… —, a recente revisão desse diploma fundamental veio a transformar-se num motivo de controvérsia, para além dos muros do Parlamento. Desde logo, o Presidente da República, após a aprovação parlamentar, criticou formalmente várias das disposições do Estatuto e submeteu algumas delas à fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional, obtendo ganho de causa quanto a várias.
Pena foi que não tivesse suscitado também idêntico pronunciamento prévio a propósito da pretendida regulamentação, por via do Estatuto, do poder presidencial de dissolução do Parlamento Regional, aliás limitado, desde 2004, à resolução de crises políticas, em termos análogos ao que se passa com a Assembleia da República no plano nacional. É previsível que o Tribunal Constitucional lhe teria logo dado razão, pois é entendimento assente que os poderes dos órgãos de soberania só podem constar da Constituição, sendo insusceptíveis de modificação ou condicionamento por diplomas de hierarquia inferior. Personalidades prestigiadas, dos mais diversos quadrantes políticos, vieram reconhecer o bem fundado da posição do Presidente da República, criticando do mesmo passo a atitude do PS em abrir com o chefe do Estado uma guerrilha institucional.
Na sua arrogância maioritária, o PS rejeitou, repetidas vezes, propostas de emenda que teriam permitido evitar a inconstitucionalidade do preceito em causa, propiciando até a sua entrada em vigor ainda antes das eleições regionais de Outubro passado. Não faria, porém, sentido inviabilizar o diploma, em votação parlamentar, depois de uma aprovação unânime, repetida por duas vezes. O Estatuto é demasiado importante para os Açores para sofrer mais delongas. Abre à Região o poder legislativo com grande amplitude, tendo em vista dinamizar, pela diferenciação dos regimes jurídicos, o seu desenvolvimento económico e social. Quanto ao preceito — ou preceitos… — controversos, poderão sempre ser submetidos, em fiscalização sucessiva, ao Tribunal Constitucional e eventualmente declarados nulos com força obrigatória geral. O Presidente da República, que tomou a peito o conflito, em defesa do sistema semipresidencial consagrado na Constituição, não deixará certamente de o fazer. Mas tal não impede a entrada em vigor do diploma e os benefícios inerentes.
Ficam, porém, de pé danos sérios no consenso nacional sobre a Autonomia, alvo novamente de críticas e suspeitas, julgadas já há muito ultrapassadas, patentes agora em intervenções de líderes de opinião e nos meios de comunicação social de referência. Isso sem contar com o que se vai resmungando nos corredores do poder central… Daí que se tenha tornado muito duvidosa qualquer obtenção de novas conquistas autonómicas numa próxima revisão da Constituição, cujo processo será aberto, no prazo previsto, com a apresenta ção de um projecto de autoria madeirense. Talvez por isso, diferentemente do que aconteceu nas vezes anteriores, a derradeira votação do Parlamento, embora por ampla maioria, atingindo mesmo resvés os míticos dois terços dos deputados presentes, concluiu-se sem entusiasmo nem aclamações, com uma chuva de anúncios de declarações de voto, individuais e colectivas, sobretudo das bancadas do PS e do PSD, deixando transparecer as divergências de opinião, que a disciplina partidária tinha sufocado"
João Bosco Mota Amaral (no Expresso, 27 de Dezembro de 2008, transcrição com a devida vénia)

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