Por estes dias - a propósito de uma
palermice que a todos devia envergonhar a começar pelo patético presidente e
acabando no protagonista desta miserável vergonha tão aplaudida por imensidão
de mentecaptos idiotas que apenas viram resolvidos problemas mesquinhos que a
política mais miserável vai parindo no seu quotidiano de mediocridade e memórias
curtas por conveniência - lembrei-me de uma história bem verdadeira e que muitos
que trabalharam comigo a viveram e dela se recordarão.
Havia uma senhora - a Dona C. de seu nome -
com uma vida de trabalho na função pública, andando de um lado par a outro,
levando e trazendo, e que depois de ter completado a idade da reforma vivia um
pesadelo que ela discutia com poucos, o de ser mandada para casa. E chorando
não tinha medo de assumir esse seu medo e de partilhá-lo com alguns, em quem
mais confiava. Foi ficando, foi vivendo, era uma espécie de património da
instituição, uma peça conhecida das suas gentes e memórias. A gente sabia,
todos sabíamos, que provavelmente não devia estar a trabalhar mais, fazendo o
que sempre fez. A mim chegaram-me a dizer que não era bom nem para ela nem para
a instituição, por causa da idade e da teoria - imagine-se - de que estávamos a
aproveitar-nos de uma senhora idosa cujo mundo era aquele, foi sempre aquele, o
de andar de um lado para outro, de servir, dentro e fora da instituição da qual
era parte.
Havia um sentimento de imposição da
partilha de uma compreensão alargada mesmo que não consensual - que nada tem a
ver com o sentimento de vergonha e de pena que sinto por alguém que precisa de
sobreviver em certos tachos apenas para poder dar razão à vida que leva -
porque era preciso defender a Dona C. e perceber que ela precisava de estar
ali, na sua vida, naquele quotidiano que lhe garantia um rendimento necessário
para a sua vida, precisava de ver-nos e ouvir-nos a todos, mesmo os que não se
davam tão bem com ela. A Dona C era da casa, muito antes que eu, muitos anos
antes que eu lá chegar, e isso impedia-me a mim e a muitos outros que comigo
partilhavam o dia-a-dia dela, a decisão de enviar a Dona C. de vez para casa,
para gozar a sua merecida reforma. Como, se o que ela queria era estar ali no
meio da confusão? Ninguém dava por ela muitas vezes, mas ela estava lá, sabíamos
que ela estava lá e sempre que fosse preciso ela respondia à chamada. E nem
mesmo quando o peso dos anos começou a curvar-lhe as costas, a disfarçar
algumas maleitas ou a dificultar-lhe a mobilidade, ela aceitava um destino que
parecia apenas adiado, mas que inevitavelmente um dia teria que a fazer recuar.
A Dona C. era uma mulher vivida, que morava ali para as bandas de São Martinho,
humor e também língua afiada, que tinha a sua rotina, que sabia o que fazia,
era das primeiras a chegar e não precisava de ser das últimas a sair, bastava
que estivesse lá, presente quando era preciso, dentro ou fora, levando ou
trazendo, o tal quotidiano que ela sabia ser o seu e que não admitia que lhe
tirássemos, aquele dia-a-dia que sempre foi o seu, no leva e trás, dentro e
fora da instituição que era a sua vida. Optamos, mesmo que trabalhasse menos,
limitando as suas responsabilidades, que ela continuasse a viver como queria e
precisava.
Até que um dia, foi a justificação que me
deram, já não era mais possível, porque a lei obrigava a que a Dona C. fosse
mandada compulsivamente para casa, mesmo contra a sua vontade. E mais. Alguém
me disse até, lembro-me disso como se fosse hoje, que a Dona C. a continuar no
seu dia-a-dia, levando e trazendo daqui para acolá, dentro e fora da
instituição, ponha em causa a imagem desta e impedia que contratássemos pessoas
mais jovens que precisavam de trabalho. Não tive coragem de dizer fosse o que
fosse à Dona C. mas tinha a certeza que ia sentir a falta dela, das suas
conversas, das suas manhosices que ainda manhã cedo nos davam acrescida vontade
de iniciar mais um dia de trabalho, uns atrás dos outros, a mesma rotina.
Há dias lembrei-me da Dona C. quando
percebi que nem a casa dela existia mais, a pequena casa que era o seu mundo, e
pela qual lutou com determinação, tal qual um rei defendia o seu castelo, até quando
a queriam despachar. Há dias lembrei-me dela. Claro que não tinha 80 anos, mas
estava tão agarrada ao seu lugar como outros. Só que para ela a lei obrigou-a a
ir embora enquanto outros por falta de vergonha e de dignidade hoje agarram quais
lapas, com o mais descaramento deste mundo ao tacho e às mordomias que dão
algum sentido à vida deles. E ainda por cima contam o subserviente e
dispensável aplauso frenético de uns tantos que acham que é tudo normal e
tolerável mesmo quando essa "normalidade" é incompatível, com a lógica
de tudo na vida. E na política.
Fiquem bem. Eu tive saudades da Dona C. porque
com ela lidei. Estou-me borrifando para os outros oportunistas saloios e sem
vergonha que por aí andam, sem a tal lei que obrigou a Dona C. a ter que ir
para casa mesmo contra a sua vontade. Não quero saber deles para nada, não
preciso deles para nada, não lhes reconheço nada, nunca falei com eles, nem me
interessam para nada.
Coitadas das outras Donas C, homens ou
mulheres, que neste país de merda são obrigadas (os) a ir embora por força de
leis que alguns idiotas presidenciais promulgam, mas que não as seguem quando
se trata deles próprios, das suas escolhas e decisões. E lembro-me de casos
recentes e mediáticos de conhecidas Donas C. como a ex-Procuradora-Geral da República
e o ex-Presidente do Tribunal de Contas, saneados com base em argumentos ridículos
que gente pouco séria repetidamente usou só porque lhes convinham num determinado
momento na formalização da golpada de nomeações previamente negociadas. Fique
bem Dona C, até um qualquer dia destes (LFM)
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