A ONU responsabilizou o Governo venezuelano
pela morte de pelo menos 46 pessoas, a detenção arbitrária de mais de 5000
pessoas e “uso generalizado” de “tortura” no contexto das manifestações contra
Nicolás Maduro. O Expresso falou com dois especialistas de organizações
não-governamentais para perceber as implicações e possíveis consequências desta
denúncia. Desde o início dos protestos contra o Governo de Nicolás Maduro, a 1
de abril, morreram 46 manifestantes às mãos das forças de segurança
venezuelanas e outros 27 foram mortos por grupos conotados com o Governo, os
denominados “coletivos armados”. Ficaram feridas pelo menos 1.958 pessoas e
outras 5.000 foram detidas arbitrariamente, das quais 1.000 ainda se encontram
presas.
Foi ainda denunciado o “uso generalizado e
sistemático de força excessiva” contra os manifestantes e o recurso a “métodos
de tortura” contra detidos, dos quais se destaca o recurso a “choques
elétricos, espancamentos, asfixia com recurso a gases tóxicos, ameaças de morte
e, em alguns casos, ameaças de violência sexual contra os detidos e respetivos
familiares”.
Trata-se da primeira investigação do Alto
Comissariado da Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre as mortes na
Venezuela e as violações e abusos dos direitos humanos no país. Phil Gunson,
analista do International Crisis Group, não acredita, no entanto, que isso
possa afetar a reputação do Governo, “que já é tão má, com a divulgação de
imagens tão incriminatórias na televisão e nos jornais de todo o mundo”. “Duvido
que isto tenha algum impacto na opinião da maioria das pessoas”, afirmou o
analista em entrevista ao Expresso, a partir de Caracas, capital da Venezuela,
onde vive.
Tamara Taraciuk, investigadora da organização
não-governamental Human Rights Watch, tem outra opinião. Acredita que a
denúncia da ONU vai afetar a credibilidade de Nicolás Maduro. “Trata-se de uma
declaração oficial emitida pela maior organização independente de direitos
humanos”, começa por dizer. E continua: “A cada dia que passa, torna-se cada
vez mais difícil levar a sério aquilo que Maduro diz sobre a situação no país.
Não podemos fechar os olhos às imagens da repressão que vemos e àquilo que as
vítimas e os familiares das vítimas nos contam”.
Para a especialista em assuntos da América Latina,
esta investigação “irá servir de incentivo às vítimas para continuar a
denunciar”. “Elas sabem que vão ser ouvidas e que, mais tarde, quando for
restaurada a independência judicial no país, os seus testemunhos serão usados
para condenar os responsáveis em tribunal”. Por outro lado, esta denúncia “irá
ajudar os líderes democráticos, ao fornecer-lhes mais provas sobre o que está a
acontecer no terreno, que devem ser usadas para pressionar Maduro para resolver
a crise”.
Já da parte do Governo venezuelano é
improvável uma mudança, diz Phil Gunson. “Infelizmente, não acredito que alguma
coisa vá mudar. O Governo continua a insistir que todos estes relatórios que
têm vindo a ser divulgados fazem parte de uma conspiração internacional contra
a ‘revolução’”. Por outro lado, diz o analista, “certos comportamentos do
Governo mostram que há uma preocupação com a deterioração da sua imagem
internacional”. “Acho que o facto de serem evitados ‘massacres’, apesar do
elevado número de assassínios no contexto das manifestações, mostra como há uma
vontade de evitar picos de repressão violenta que poderiam denegrir ainda mais
a imagem do Governo lá fora e desencadear reações internacionais”. O Governo,
acrescenta Phil Gunson, “parece saber exatamente quantas pessoas precisam de
morrer para manter os protestos sob controlo, mas evitar, ao mesmo tempo,
publicidade negativa”.
“O MAIS IMPORTANTE É DETERMINAR SE FORAM
COMETIDOS CRIMES CONTRA A HUMANIDADE”
Embora não acredite que a denúncia da ONU vá
afetar a reputação de Nicolás Maduro, o analista do International Crisis Group
reconhece a importância e o peso desta investigação. “Trata-se de um organismo
das Nações Unidas e isso certamente terá algum impacto naqueles que, fora do
país, se debatem para saber o que fazer”.
Phil Gunson relembra ainda outra investigação
em curso, que está a ser conduzida por Luis Moreno Ocampo, um antigo procurador
do Tribunal Penal Internacional. O objetivo é perceber se foram cometidos
crimes contra a humanidade na Venezuela. “Se isso se provar, o mais
significativo progresso ao nível dos direitos humanos será provavelmente a
condenação internacional dos responsáveis”. Assunto que, diz, “será acompanhado
de muito perto, sobretudo pelas forças de segurança venezuelanas. “Por um lado,
poderá fazer com que o grupo mais restrito de apoiantes de Maduro se mostre
ainda mais determinado em manter-se no poder para evitar uma condenação. Mas,
por outro, poderá levar a que outros, sob os quais não recai ainda qualquer
acusação, mudem de planos”, sublinha o analista.
O APOIO DOS MILITARES. QUANTO E ATÉ QUANDO?
Entre esses que optaram já por outro rumo
encontram-se, por exemplo, Juan Carlos Caguaripano, o ex-capitão da Guarda
Nacional Bolivariana que, no domingo passado, divulgou um vídeo a exigir “um
governo de transição e eleições livres”. “Isto não é um golpe, mas sim uma ação
cívica e militar para restabelecer a ordem constitucional e salvar o país da
destruição total”, diz o ex-capitão virado para a câmara, tendo atrás de si
outros homens igualmente fardados e armados. Juan Carlos Caguaripano foi
expulso da Guarda Nacional há três anos e é procurado pelo Governo por alegada
conspiração.
Na mesma manhã em que o vídeo foi divulgado,
um grupo de 20 homens armados assaltou um quartel militar em Valencia, terceira
maior cidade do país. Alguns foram detidos pelos soldados que guardavam o
quartel, mas outros conseguiram fugir com armas roubadas. Nicolás Maduro acusou
um ex-tenente de ser cúmplice do roubo e vários especialistas concordam com
essa teoria. Entre eles, Cliver Alcalá, um antigo general das Forças Armadas
que, durante muitos anos, foi responsável pela segurança do quartel em causa.
“Foi alguém de dentro da unidade que lhes deu a chave, de outra forma não
conseguiriam ter entrado”, disse ao “New York Times”. “Há muitos problemas
pessoais e morais dentro das forças armadas”, acrescentou.
O que aconteceu no domingo em Valencia está
longe, porém, de ser um caso isolado. São cada vez mais os casos de militares
que, ou despem os uniformes e pousam as armas, ou usam-nos noutro contexto,
para incentivar à rebelião. “As suas famílias, os seus amigos, as suas esposas,
toda a gente está a sofrer. Os militares começam a questionar-se, a perguntar a
si próprios se as coisas vão mesmo melhorar ou só piorar”, afirmou Raúl Salazar,
um antigo general que foi ministro da Defesa no tempo de Hugo Chávez, também ao
“New York Times”. “Todos eles se debatem interiormente com esse assunto todos
os dias”.
Em maio, no mesmo mês em que Nicolás Maduro
anunciou a sua intenção de convocar uma Assembleia Nacional Constituinte para
rever a Constituição de 1999, um outro militar dissidente divulgou um vídeo, a
partir de uma localização incerta, a encorajar os venezuelanos a rebelarem-se
contra o Governo. “A única coisa que deveríamos estar a negociar neste momento
era a cadeia onde Maduro vai ficar”, diz o antigo militar. Já em junho, deu-se
o ataque contra o Ministério do Interior e a sede do Supremo Tribunal, em
Caracas, por um homem que se identificou como Óscar Pérez, foi apresentado como
polícia e que é investigador do CICPC (Corpo de Investigações Científicas,
Penais e Criminais).
“Começam a ver-se algumas fraturas incipientes
dentro do Exército”, diz Tamara Taraciuk. Fraturas essas que poderão tornar-se
maiores e mais visíveis, ou mais profundas, com a divulgação de relatórios e
denúncias como esta da ONU. “Se os membros das forças de segurança, incluindo
os militares, souberem que se cometerem crimes vão ser responsabilizados, vão
acabar por deixar de obedecer às ordens de repressão que lhes são dadas”, diz a
investigadora.
“SEM UMA SOLUÇÃO POLÍTICA NÃO PODERÁ HAVER UMA
MUDANÇA”
Acontecer o que acontecer dentro do Exército
venezuelano, os seus efeitos não serão totalmente visíveis para já. Por isso, o
“mais urgente e importante” agora é chegar a uma “solução negociada para a
crise política” que se vive no país, diz Phil Gunson. “Os membros da OAS
[Organização dos Estados Americanos] têm de chegar a uma solução negociada. Sem
uma solução política, que conduza preferencialmente a um governo de transição,
não poderá haver nenhuma mudança, seja ao nível da crise humanitária e social,
seja ao nível da crise dos direitos humanos”.
Para Tamara Taraciuk, também são muitos certos
quais os próximos passos a dar. “É preciso redobrar a pressão sobre o Governo
venezuelano para assegurar a realização de eleições livres e justas, a
libertação de todos os prisioneiros políticos, o fim da repressão, o
restabelecimento da independência do poder judicial, devolução dos poderes à
Assembleia Nacional [Parlamento] e, por fim, a entrada de ajuda humanitária
internacional no país”. Depois de enumerar as necessidades, a investigadora
conclui, quase como um desabafo: “Depois de um longo e vergonhoso silêncio, os
principais líderes democráticos começaram finalmente a pronunciar-se sobre os
abusos de Maduro” (texto da jornalista Helena Bento, Expresso)
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