quarta-feira, abril 25, 2012

Síria: "O que te aconteceu, Asma?"

"De "rosa do deserto", a primeira-dama síria passou a Lady Macbeth. Sarkozy pensava que "com uma mulher como a dele", Bashar al-Assad "não pode ser completamente mau". Os media ocidentais tratavam-na como "uma de nós" e agora não lhe perdoam. Afinal, ela é mesmo "uma de nós". "Apagá-la da narrativa ocidental, é impossível. Ela nasceu britânica, não é naturalizada. Ela cresceu britânica. Não podemos tirar-lhe o passaporte nem a história pessoal", escreve Zeina Awad. Asma al-Assad, a primeira-dama síria, "pertence ao colectivo ocidental "nós" e, gostemos ou não, vai continuar a pertencer mesmo depois de a sua "missão civilizadora" ter falhado", continua Awad, correspondente da Al-Jazira em Washington, num texto publicado há dias no site da estação. "Por mais que nós nos tentemos afastar dela, ela permanece uma de nós." O pretexto para o texto de Awad é o mesmo deste artigo. Um abaixo-assinado acompanhado de um vídeo e promovido pelas mulheres dos embaixadores britânico e alemão na ONU interpela Asma, pedindo-lhe que use o seu poder para obrigar o marido, Bashar al-Assad, a parar de matar os seus cidadãos. Até ontem 29 325 tinham assinado a petição (alojada no site da change.org. No início de Março, as Nações Unidas diziam que a repressão do regime de Damasco às manifestações pró-democráticas que começaram há 13 meses na Síria já tinha feito 9000 mortos, a maioria civis. "Cara Asma, algumas mulheres preocupam-se com o estilo, e algumas mulheres em tomar conta dos seus. Algumas mulheres lutam pela sua imagem, e algumas mulheres lutam pela sua sobrevivência." Começa assim o texto da petição, que é lido no vídeo - uma montagem de fotografias de Asma, glamourosa como sempre, intercaladas com imagens da revolução, mães com bebés nas mãos, meninas a fugir do Exército, filas de corpos envoltos em lençóis brancos, mulheres na linha da frente das manifestações. As imagens são acompanhadas por uma narração alternada com a voz da própria primeira-dama. "Algumas mulheres esqueceram-se do que já pregaram pela paz", ouve-se. E logo depois, Asma por ela própria: "Todos merecemos o mesmo. Todos deveríamos poder viver em paz, com estabilidade e com a nossa dignidade". Logo a seguir, a pergunta: "O que te aconteceu, Asma?".
Isso ninguém sabe. Fica o que sabemos. "Centenas de crianças sírias já foram mortas ou ficaram feridas." Fica também o que gostaríamos de ver acontecer. "Defende a paz, Asma. Fala agora. Detém o teu marido." Nas últimas linhas afirma-se: "Ninguém quer saber da tua imagem. Queremos saber dos teus actos. Já". Não deixa de ser irónico. "Nós" sempre quisemos saber da imagem de Asma. Gostávamos que não usasse lenço e que calçasse sapatos Christian Louboutin. Gostávamos que o seu sotaque britânico fosse perfeito. Gostávamos que fosse tão elegante. Recebemo-la em Paris e enchemos jornais sobre ela no Reino Unido. Tudo mudou com a revolução síria e os seus milhares de mortos. Agora, já não queremos que Asma faça compras nas lojas de Paris ou Londres. Choca-nos descobrir que o faz: a meio de Março, quando o Guardian publicou dezenas de emails a que activistas da oposição síria conseguiram aceder pirateando as contas privadas de Bashar e de Asma, não queríamos acreditar que a primeira-dama continuasse a encomendar móveis de design. Não, agora já não queremos compras dessas. O mês passado, a UE incluiu Asma no grupo de pessoas visadas por sanções, impedindo-a de viajar para os Estados membros (menos para o Reino Unido, onde nasceu). E já amanhã Bruxelas vai avançar com a décima quarta ronda de sanções contra o regime. Segundo explicou um diplomata citado pela AFP, as sanções estão prontas e visam limitar as importações de produtos de luxo. "Trata-se de fazer compreender ao casal Assad que os acontecimentos na Síria também têm consequências no seu estilo de vida pessoal", explicou o diplomata à agência de notícias francesa.
"Diana do Oriente"
A revolução síria começou em Março de 2011. No mesmo mês, a Vogue norte-americana publicava um perfil de Asma onde a descrevia como "glamourosa, jovem e muito chique - a mais refrescante e magnética das primeiras-damas". O "magnetismo" vinha de trás: em Dezembro de 2008, a Elle distinguiu-a como "a primeira-dama mais bem vestida do mundo", à frente de Carla Bruni; pelo meio, a Paris-Match chamara-lhe "Diana do Oriente". Asma era tudo isto, pelo menos para "nós", antes da revolução. Agora, tudo o que costumava ser-lhe apontado como qualidade regressou para a assombrar. Filha de um reputado cardiologista e de uma diplomata, nasceu Asma al-Akhras em 1975 em Londres. A família é árabe sunita (como a maioria dos sírios) e originária de Homs (cidade que mais sofreu na revolta), parte da elite sunita aliada do regime alauita. Os Akhras tinham acesso ao palácio presidencial, onde o pai de Bashar, Hafez, estava desde 1971, e Asma conheceu Bashar, dez anos mais velho, nas férias de Verão. Asma teve um percurso académico e um arranque de carreira irrepreensíveis. A uma escola anglicana seguiu-se uma licenciatura em Ciência Informática e um diploma em Literatura Francesa no King"s College. Depois, trabalhou para o Deutsche Bank como gestora de fundos até ser contratada pelo banco JP Morgan, em 1998, para se ocupar de fusões. Seis anos antes, Bashar, licenciado em Medicina, chegara a Londres para se especializar em oftalmologia. A amizade começou a crescer quando este ainda era apenas filho de Hafez; Basel, o irmão mais velho, era o escolhido para suceder ao pai. Mas quando Basel morreu, em 1994, Asma e Bashar estavam envolvidos. E quando casaram, em Dezembro de 2000, Bashar já tinha sido eleito há seis meses com uns "fabulosos" 97% por votos (palavras da Vogue). Para trás ficava Londres, mas não a modernidade. Em Damasco, o casal, que hoje tem três filhos (dois rapazes, com dez e oito anos, uma menina de sete), escolheu viver num triplex de luxo em vez de se mudar para o palácio presidencial.
Democracia caseira
A Vogue entrou no apartamento presidencial e, entre um candelabro feito de recortes de BD e muitas malas de design, também fotografou a grelha desenhada num quadro negro, com autocolantes para cada membro da família: "Temos tido problemas com a boa-educação, por isso fizemos esta grelha, com autocolantes para quando eles falam como devem e uma cruz quando não o fazem", explica Asma. Em frente ao nome da primeira-dama havia uma cruz. "Eu gritei", confessa. Na mesma conversa explica que lá em casa "há uma democracia" - "Todos votamos no que queremos. Eles venceram, 3-2", conta, apontando para o candelabro, uma escolha dos filhos. "Eu não posso falar sobre dar poder aos jovens, encorajá-los a serem criativos e a assumirem responsabilidades se não for assim com os meus próprios filhos." Enquanto primeira-dama, Asma dedicou-se ao desenvolvimento rural, mas também ao apoio a mulheres e crianças. Em 2005 fundou a Massar, ONG destinada a promover a actividade política entre os jovens. Os analistas que seguem a Síria dão algum crédito a Asma por ter influenciado o marido nos primeiros anos da sua presidência, quando Bashar deu sinais de abertura. Fechou a temível penitenciária de Mezze, por exemplo, mas abriu outras e continuou a encerrar activistas e a não tolerar opositores. Em Dezembro de 2010, poucos dias antes do tunisino Mohamed Bouazizi se ter imolado pelo fogo, desencadeando a primeira das revoltas árabes, os Sarkozy recebiam os Assad para um almoço no Eliseu. Tanto glamour deixou desconfortáveis alguns diplomatas. "Quando explicávamos a [Nicolas] Sarkozy que Assad era um tirano da pior espécie, ele dizia: "Bashar protege os cristãos, e com uma mulher tão moderna como a dele, não pode ser completamente mau"", confidenciou aos jornalistas o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Bernard Kouchner. "É uma verdade universalmente aceite que um ditador que queira ser aceite pelo Ocidente deve procurar uma mulher charmosa e culta", escreveu a Reuters numa análise publicada na mesma altura. Quando a Vogue entrevistava Asma em Damasco, já havia sírios a manifestar-se, mas poucos analistas acreditavam que o despertar árabe chegasse à Síria: Assad controlava a polícia política, o Exército, os serviços secretos. Os sírios acreditavam. Em Março, 15 miúdos de Deraa, no Sul, escreveram "o povo quer a queda do regime" nas paredes da escola. Foram presos e torturados e a cidade saiu à rua para pedir "justiça, direitos e a responsabilização" dos que tinham maltratado as crianças.
A contestação foi crescendo e a repressão piorando. E Asma saiu de cena.
"O que é que a esposa de Assad, uma mulher inteligente e educada criada no liberal Reino Unido, pensa das malvadezas perpetradas todos os dias pela Síria? Será que a princesa Diana da Síria se tornou na sua Maria Antonieta?", perguntou em Fevereiro o diário britânico The Times. O jornal sentiu que tinha de perguntar - afinal, Asma sempre foi referida um pouco por todo o mundo com o prefixo "nascida no Reino Unido". Mais surpreendente, Asma decidiu que tinha de responder: "A agenda da primeira-dama continua focada nas organizações com que há muito está envolvida e em apoiar o Presidente nas suas necessidades. Por estes dias está igualmente envolvida em encorajar o diálogo. Ouve e conforta as vítimas da violência". Segundo contou uma síria ao Independent, pelo menos em Outubro Asma ainda contactava com jovens, tendo convocado assistentes sociais e pedido para que lhes explicassem as dificuldades do seu trabalho. O que eles fizeram foi falar-lhe das manifestações, da tortura e das execuções. "Não reagiu, foi como se lhe estivéssemos a contar uma história do quotidiano sem grande interesse." "Todas as revoluções têm a sua Lady Macbeth", diz um perito em Médio Oriente ouvido pelo jornal Guardian. Pelo menos para "nós". Os sírios nunca esperaram tanto de Asma como Sarkozy" (texto da jornalista do Publico, Sofia Lorena, com a devida vénia)

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