terça-feira, março 24, 2020

Covid19: Fármacos contra malária e cancro podem ajudar nos casos graves

Quando um vírus se espalha numa população sem imunidade, a um ritmo acelerado e com uma taxa de mortalidade elevada em alguns grupos de risco, como é o caso do novo coronavírus, desenvolver uma vacina torna-se uma missão urgente. Mais de 30 laboratórios em todo o mundo entraram nesta corrida, e os testes já arrancaram em países como a China, os Estados Unidos ou a Itália. Mas é preciso tempo: uma vacina só é aprovada e disponibilizada depois de ficar garantida a sua segurança e eficácia. Em situações normais, pode levar vários anos, mas em casos de emergência, como o da atual pandemia, é possível entrar numa espécie de fast-track, acelerando o processo mas sem saltar nenhuma etapa de segurança. E é por isso que, na melhor das hipóteses, será preciso pelo menos um ano até que a vacina esteja pronta.

“Todas as vacinas têm de ultrapassar vários testes de segurança, normalmente feitos em animais, antes de passarem para as diferentes fases de ensaios clínicos em voluntários. Só se avança para uma etapa depois de se cumprir a anterior. O objetivo é ver se a vacina é segura e não tem nenhum risco adverso para a saúde e também confirmar se é suficientemente potente e eficaz a produzir a resposta imunológica necessária”, explica Markus Maeurer, clínico imunologista e investigador da Fundação Champalimaud, que tem estado a acompanhar em detalhe o desenvolvimento destas vacinas, além de estar em contacto permanente com os hospitais chineses que estão a tratar doentes com covid-19. “A equipa de investigadores que está a desenvolver a vacina na China [da Academia de Ciências Médicas Militares] é a mesma que criou a vacina para o ébola. Tal como estão a fazer outros laboratórios, os chineses também estão a usar uma componente que já tinha sido testada anteriormente em termos de segurança e eficácia. É como se usassem um mesmo envelope, mas com uma carta diferente lá dentro.”
Essa é precisamente uma das explicações para que seja possível que o desenvolvimento desta vacina leve entre 12 a 18 meses e não cinco ou dez anos, como acontece noutros casos. É como se entrasse numa via rápida, tal como está a acontecer nos Estados Unidos, com a vacina desenvolvida pela Moderna, uma empresa de biotecnologia americana que, em parceria com o Instituto Nacional de Saúde [NIH] americano, já iniciou esta semana os primeiros testes em voluntários. Além disso, o ‘avanço’ que a China leva em termos de experiência com este novo coronavírus, partilhado com os cientistas a nível mundial, ajudou a perceber mais rapidamente as características do vírus. “Como o tempo exerce pressão, a empresa que também está a desenvolver uma vacina em Itália, por exemplo, optou por avançar com testes em adultos saudáveis em situação de maior risco de serem infetados, como os médicos e enfermeiros. É uma forma de ganhar tempo.”
Face a estes avanços, o especialista em imunologia da Champalimaud admite que alguns resultados surjam antes do final deste ano, até porque as primeiras respostas aos testes que estão a decorrer nos EUA são esperadas para este verão. Se nos próximos meses a monitorização dos voluntários evidenciar que a vacina não tem nenhum efeito adverso e é eficaz, além de permitir definir qual a dose necessária e se basta ser dada uma só vez, será possível avançar para ensaios clínicos mais alargados.
E, até lá, o que se faz?
Pedro Simas, virologista do Instituto de Medicina Molecular (IMM), defende que, neste contexto de pandemia, é impossível estar só à espera da vacina. “Daqui a um ano, o cenário será diferente. A imunidade de grupo, ou seja, o equilíbrio que se atinge quando a maior parte da população já foi infetada, será maior”, diz. “Portanto, enquanto não houver vacina, o que se pode fazer é encontrar um equilíbrio entre medidas de contenção e distanciamento social para diminuir a taxa de infeção diária do vírus. E combinar dois aspetos: por um lado, os fármacos que consigam reduzir a mortalidade, por outro, a aquisição da tal imunidade de grupo.”
O efeito mais grave do coronavírus nos doentes são os problemas respiratórios. “Os pulmões ficam muito danificados. É por isso que os doentes precisam de ventilação, porque a inflamação é tal que não conseguem respirar sozinhos. Mas a infeção não é só nos pulmões, ela estende-se ao corpo inteiro”, frisa. Isso acontece porque a resposta imunitária é tão forte que destrói o próprio corpo. “É como se, em vez de só matar o inimigo, o sistema imunitário enviasse milhares de soldados que matam tudo.”
Laboratórios estão a tentar desenvolver uma vacina. Ensaios em humanos já arrancaram nos EUA e na China
Alguns fármacos já existentes e usados noutras doenças podem ser úteis nestes casos, travando a resposta excessiva do sistema imunitário. “Há mais de 100 testes clínicos a decorrer só na China, muitos deles com sucesso e muito promissores. Em causa estão fármacos usados contra a malária, por exemplo, outros mais avançados usados por doentes com cancro, ou os fármacos usados em pacientes com doenças autoimunes. O objetivo é atuar contra o vírus e travar a resposta imunológica excessiva.”
Foi nesse sentido que a Socie­dade Portuguesa de Cuidados Intensivos entregou à Direção-Geral da Saúde um documento no qual, entre várias outras recomendações na abordagem aos doentes com covid-19 que necessitem de cuidados intensivos, propõem também a utilização de um fármaco usado nos anos 80 no tratamento da malária e um antirretroviral utilizado no VIH. Contudo, o fármaco contra a sida falhou nos testes de tratamento do novo vírus, segundo o artigo científico publicado na quarta-feira no “The England Journal of Medicine”.
“Este tipo de fármacos, que conhecemos de outras doenças, podem ajudar o sistema a eliminar a má inflamação, a que destrói o corpo, preservando a resposta imunológica que mata o vírus”, sublinha o especialista alemão da Champalimaud. “Na China, centenas de pessoas já receberam estes fármacos. E, enquanto não há vacina, temos a responsabilidade de tratar as pessoas que estão em estado mais grave. E há formas de o fazer.” (Raquel Albuquerque com Vera Lúcia Arreigoso, Expresso)

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