“O BES tem sido um dos principais braços financeiros
do poder político, um dos meios através dos quais os governos controlaram a
economia e em especial antigas empresas públicas com posições dominantes
Alguma coisa está a chegar ao fim em Portugal. Depois
de mais de uma década de estagnação económica e de três anos de austeridade e
recessão, há alicerces profundos a abanar. Os sinais são por vezes
surpreendentes.
A semana passada, vimos o líder de um dos maiores
bancos portugueses dar uma entrevista que noutro qualquer ponto geográfico do
Ocidente teria imposto a sua demissão imediata. Na véspera, uma auditoria
encomendada pelo Banco de Portugal desenterrara uma montanha de dívida não
contabilizada nas contas da holding principal do grupo, a Espírito Santo
Internacional. Ricardo Salgado reconheceu “negligência grave” e “incompetência”,
mas encarou a responsabilidade de um ponto de vista igualitário: “todos nós
somos responsáveis”. Pelos vistos, passaram os tempos em que quem liderava era
mais responsável.
Até aqui, a história tem sido tratada de duas
maneiras: como um simples caso de sucessão familiar, com intrigas copiadas de
um episódio da velha série Dinasty, ou como mais um caso de “irregularidades”
bancárias, a saldar eventualmente pela justiça e pelos contribuintes. Talvez
seja tudo isso. Mas não é só isso, ou não é sobretudo isso. É muito mais: é o
som da crise a fazer estremecer oligarquia.
O BES não gere apenas um balanço de cerca de 80 mil
milhões de euros. Desde o fim do século passado, foi também um dos principais
braços financeiros do poder político democrático, um dos meios através dos
quais os governos controlaram a economia e muito particularmente antigas
empresas públicas com posições dominantes no sector dos serviços. O BES, sob a
actual direcção, fez parte da sombra projectada pelos gabinetes ministeriais
sobre a iniciativa privada em Portugal. Veio daí a lenda do DDT (Dono Disto
Tudo).
Não me interessa aqui a pessoa ou a empresa, mas o
sistema. Por esse lado, nada disto é novo. No fim do século XIX, os dois
maiores partidos políticos em Portugal tinham, cada um, o seu banqueiro. Os
Regeneradores dispunham de Henry de Burnay e os Progressistas, do marquês da
Foz. Os partidos, quando no governo, tratavam de concentrar nos banqueiros
amigos todos os grandes negócios do país – o monopólio do tabaco, os caminhos
de ferro –, e em contrapartida os banqueiros ajudavam, entre outras coisas, a
financiar os défices e as dívidas da governação. Tudo ruiu com uma crise
financeira, em 1890-1892, como agora.
Os académicos da extrema-esquerda descrevem isto, mas
não o compreendem. Julgam que para eliminar os “donos de Portugal” bastaria
eliminar os privados da equação. Não bastaria. Quando não houve privados, nem
por isso faltaram “donos”: por exemplo, os gestores instalados pelos partidos
nas empresas públicas. Em alguns casos, o que se passou em Portugal faz lembrar
a transição na ex-União Soviética: antigos apparatchiks apareceram convertidos
em empresários e banqueiros. Neste regime, não há poder económico contra o
poder político. Porque o poder económico só o pode ser na medida em que for um
duplo do poder político.
E por isso, não admira o modo como está a acabar este
capítulo da história da nossa democracia. Quem lhe pôs termo não foram os
governos, que, à direita e à esquerda, sempre acharam úteis os “donos do país”
e sustentaram as suas posições dominantes, nem as entidades reguladoras, que se
limitaram a comportar-se como bombeiros depois do incêndio, nem a imprensa, que
só apanhou as histórias depois de acontecerem. Foram disputas de poder, mas
sobretudo os “mercados”, isto é, os accionistas, os investidores e a
concorrência que, no contexto da crise financeira, desconfiaram dos
alavancamentos e dos riscos, reagiram às concentrações de poder e às ambições
pessoais, e finalmente chamaram a atenção decisiva das autoridades e dos jornais
com os seus alarmes, divisões e guerrilhas. As demais histórias da banca,
aliás, tiveram a mesma origem: sem os movimentos e marés do mercado durante a
crise, nunca teríamos provavelmente dado por quaisquer “irregularidades”. Nada
melhor do que mercados abertos e competitivos para, quando o merecem, garantir
o desemprego dos poderosos” (texto de Rui Ramos, no Observador, com a devida
vénia)