Quase todas as
manhãs, quando sai de casa para levar a filha à escola, Cláudia Paixão
depara-se com um cenário desolador à porta. Há muito lixo no chão, sobretudo
copos de plástico, e um forte cheiro a urina. “É uma coisa insuportável, sentir
que isto se repete e ninguém consegue pôr cobro à situação”, queixa-se a
moradora da Rua dos Mouros, no Bairro Alto, a dois passos do miradouro de São
Pedro de Alcântara, onde vive há década e meia.
A localização, à
partida, seria invejada por muitos. Mas, para Cláudia e os vizinhos, está a
revelar-se uma constante dor de cabeça. Tão ou mais incomodativo que os
despojos da vida nocturna, é a incessante repetição, cada vez mais desenfreada,
das situações que os originam. “Nesta rua nem há bares, mas quem os frequenta
vem para aqui, senta-se no passeio. E às três ou quatro da manhã há um excesso
de pessoas com colunas de som, a ouvir música, a beber e a fazer barulho até as
tantas”, relata a moradora. “De manhã, há lixo por todo o lado e rios de
urina.”
Por causa de situações como esta, Cláudia planeia comparecer na primeira assembleia aberta da nova associação de moradores Somos Bairro Alto, constituída no Verão passado. No encontro, a ter lugar a 15 de Novembro, num sábado, pelas 15h30, no Mercado de Ofícios do Bairro Alto (MOBA), serão discutidos todos os problemas que afectam uma das mais icónicas zonas do centro histórico lisboeta, talvez a mais conhecida da vida nocturna da cidade.
E é precisamente
essa identidade, cimentada ao longo de décadas, e que assim contribuiu para
aumentar a sua atractividade em paralelo com o crescimento da dinâmica
turística da capital, nos últimos anos, o motivo de todos os problemas. As
queixas sobre as dificuldades de convivência entre a vida nocturna e as
tradicionais funções do bairro não são propriamente novas. Longe disso. São até
bem antigas.
Afinal, o Bairro
Alto leva já muitos anos como zona de boémia. E os lamentos sobre a forma como
esse perfil se foi alterando também já têm alguns anos. Mas muitos dos
moradores, e alguns dos comerciantes de longa data, pressentem que se chegou,
nos últimos tempos, a um novo patamar de degradação, tornando insustentável o
seu quotidiano. “A verdade é que se tornou cada vez mais difícil viver no
Bairro Alto, porque as pessoas estão praticamente a ser expulsas”, diz ao
PÚBLICO Fabiana Pavel, uma das fundadoras da Somos Bairro Alto.
A lista de
recriminações a justificar a criação da associação é longa e está, há muito,
devidamente diagnosticada. Ruído constante, falta de higiene, insegurança
diária, aumento do tráfico de droga e descaracterização do comércio são parte
da explicação para a vida diária se ter ali tornado algo “muito complicado”.
Tudo consequência de, comenta Fabiana, o Bairro Alto se ter convertido na
“‘disneylândia’ do álcool”.
Tudo questões
amplamente conhecidas, reconhece a moradora, mas que se têm intensificado de
forma muito aguda. “A vida diurna e a nocturna conviviam de forma respeitosa no
Bairro Alto, que, entretanto, se transformou no epicentro de problemas graves.
Aquilo a que temos vindo a assistir, nos tempos mais recentes, é à implantação
de uma monocultura etílica e à evolução descontrolada da vida nocturna.
Instaurou-se a ideia de que tudo é permitido”, diz a também activista,
lamentando o que diz ser a passividade das autoridades.
“Os comportamentos
dos visitantes são totalmente desrespeitosos para com os residentes”, critica.
Um quadro intensificado pela atitude de quem explora muitos dos
estabelecimentos de bebidas baratas. “Há uma competição agressiva entre os
estabelecimentos nocturnos, que utilizam angariadores com megafones e outras
tácticas ruidosas para atrair clientes”, diz.
Na rua e nos
prédios
Fabiana Pavel diz
que esta realidade se associa a outras questões que têm afectado toda a cidade,
nos anos mais recentes, acabando por contribuir para a sua agudização. “A
especulação imobiliária, a proliferação de alojamentos locais, muitos deles
ilegais, e a falta de comércio de proximidade estão a comprometer a permanência
dos moradores, bem como a fixação de novos residentes”, observa, criticando o
que diz ser a continuada degradação do espaço público, mas também da vida no
interior dos prédios.
A postura de
grande permissividade para com o turismo do álcool, diz a fundadora da Somos
Bairro Alto, contribui amiúde para que surjam problemas nos edifícios com
alojamento local. “Como muitos dos turistas vêm bêbedos, ao final da noite, é
frequente haver pessoas que não encontram os apartamentos e andam a bater às
portas. Há também casos de gente que urina nas escadas”, conta.
Uma situação
confirmada por Cláudia Paixão. “À medida que o bairro vai sendo gentrificado,
vai-se assistindo a uma clara arrogância e a uma atitude colonial de muitos
destes turistas estrangeiros. Conheço vários casos em que apenas alugam a
estrangeiros”, diz a residente, lamentando a instalação de um clima de
“permissividade total” para com quem faz do Bairro Alto um parque de diversões.
Mas também de
“intimidação” dos que se opõem aos excessos, tanto dos turistas, como dos
empresários da noite. “As pessoas têm medo, sobretudo os mais velhos”, assegura
Cláudia. “Alguns moradores têm receio de fazer queixas”, confirma Fabiana
Pavel, notando os interesses económicos em jogo. Os lucros tidos por muitos
donos de bares de bebidas low-cost, refere, são tão elevados que “anulam o
valor de qualquer multa que possa eventualmente ser aplicada”.
Lucros que estarão
a permitir também a aquisição de diversos andares nos prédios, mantidos vazios
ou para habitação dos empregados dos bares. “Assim, fica facilitado o aumento
do ruído produzido e a expulsão dos moradores”, comenta a fundadora da nova associação,
notando que o clima ali vivido está também a provocar dificuldades aos
comerciantes “cumpridores”. É o caso de alguns restaurantes, que vêem a sua
clientela habitual fugir, dada a degradação sentida.
Diagnóstico
subscrito, mas apenas em parte, por Hilário Castro, presidente da Associação de
Comerciantes do Bairro Alto (ACBA). “A degradação da vida nocturna tem que ver,
sobretudo, com a falta de fiscalização e de aplicação das regras definidas para
o funcionamento dos negócios. Cada vez mais, observa-se a troca de
estabelecimentos cumpridores por aqueles em que vale tudo”, diz, antes de
acrescentar reservas ao que considera ser um discurso contra uma actividade há
muito estabelecida naquela zona.
“No dia em que se matar a noite do Bairro Alto, a cidade morre turisticamente”, avisa. E não se fica aqui. “Muitas dessas pessoas que agora se queixam de que o comércio tradicional do bairro está a desaparecer não o frequentam. Na verdade, se muitos dos negócios do Bairro Alto estivessem à espera dos moradores, já tinham morrido”, critica, considerando que o essencial é restabelecer o equilíbrio entre e vida nocturna e a vida comunitária (Publico, texto do jornalista Samuel Alemão)

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