sábado, novembro 15, 2025

Turismo: Contra Bairro Alto como “‘disneylândia’ do álcool”

Quase todas as manhãs, quando sai de casa para levar a filha à escola, Cláudia Paixão depara-se com um cenário desolador à porta. Há muito lixo no chão, sobretudo copos de plástico, e um forte cheiro a urina. “É uma coisa insuportável, sentir que isto se repete e ninguém consegue pôr cobro à situação”, queixa-se a moradora da Rua dos Mouros, no Bairro Alto, a dois passos do miradouro de São Pedro de Alcântara, onde vive há década e meia.

A localização, à partida, seria invejada por muitos. Mas, para Cláudia e os vizinhos, está a revelar-se uma constante dor de cabeça. Tão ou mais incomodativo que os despojos da vida nocturna, é a incessante repetição, cada vez mais desenfreada, das situações que os originam. “Nesta rua nem há bares, mas quem os frequenta vem para aqui, senta-se no passeio. E às três ou quatro da manhã há um excesso de pessoas com colunas de som, a ouvir música, a beber e a fazer barulho até as tantas”, relata a moradora. “De manhã, há lixo por todo o lado e rios de urina.”

Por causa de situações como esta, Cláudia planeia comparecer na primeira assembleia aberta da nova associação de moradores Somos Bairro Alto, constituída no Verão passado. No encontro, a ter lugar a 15 de Novembro, num sábado, pelas 15h30, no Mercado de Ofícios do Bairro Alto (MOBA), serão discutidos todos os problemas que afectam uma das mais icónicas zonas do centro histórico lisboeta, talvez a mais conhecida da vida nocturna da cidade.

E é precisamente essa identidade, cimentada ao longo de décadas, e que assim contribuiu para aumentar a sua atractividade em paralelo com o crescimento da dinâmica turística da capital, nos últimos anos, o motivo de todos os problemas. As queixas sobre as dificuldades de convivência entre a vida nocturna e as tradicionais funções do bairro não são propriamente novas. Longe disso. São até bem antigas.

Afinal, o Bairro Alto leva já muitos anos como zona de boémia. E os lamentos sobre a forma como esse perfil se foi alterando também já têm alguns anos. Mas muitos dos moradores, e alguns dos comerciantes de longa data, pressentem que se chegou, nos últimos tempos, a um novo patamar de degradação, tornando insustentável o seu quotidiano. “A verdade é que se tornou cada vez mais difícil viver no Bairro Alto, porque as pessoas estão praticamente a ser expulsas”, diz ao PÚBLICO Fabiana Pavel, uma das fundadoras da Somos Bairro Alto.

A lista de recriminações a justificar a criação da associação é longa e está, há muito, devidamente diagnosticada. Ruído constante, falta de higiene, insegurança diária, aumento do tráfico de droga e descaracterização do comércio são parte da explicação para a vida diária se ter ali tornado algo “muito complicado”. Tudo consequência de, comenta Fabiana, o Bairro Alto se ter convertido na “‘disneylândia’ do álcool”.

Tudo questões amplamente conhecidas, reconhece a moradora, mas que se têm intensificado de forma muito aguda. “A vida diurna e a nocturna conviviam de forma respeitosa no Bairro Alto, que, entretanto, se transformou no epicentro de problemas graves. Aquilo a que temos vindo a assistir, nos tempos mais recentes, é à implantação de uma monocultura etílica e à evolução descontrolada da vida nocturna. Instaurou-se a ideia de que tudo é permitido”, diz a também activista, lamentando o que diz ser a passividade das autoridades.

“Os comportamentos dos visitantes são totalmente desrespeitosos para com os residentes”, critica. Um quadro intensificado pela atitude de quem explora muitos dos estabelecimentos de bebidas baratas. “Há uma competição agressiva entre os estabelecimentos nocturnos, que utilizam angariadores com megafones e outras tácticas ruidosas para atrair clientes”, diz.

Na rua e nos prédios

Fabiana Pavel diz que esta realidade se associa a outras questões que têm afectado toda a cidade, nos anos mais recentes, acabando por contribuir para a sua agudização. “A especulação imobiliária, a proliferação de alojamentos locais, muitos deles ilegais, e a falta de comércio de proximidade estão a comprometer a permanência dos moradores, bem como a fixação de novos residentes”, observa, criticando o que diz ser a continuada degradação do espaço público, mas também da vida no interior dos prédios.

A postura de grande permissividade para com o turismo do álcool, diz a fundadora da Somos Bairro Alto, contribui amiúde para que surjam problemas nos edifícios com alojamento local. “Como muitos dos turistas vêm bêbedos, ao final da noite, é frequente haver pessoas que não encontram os apartamentos e andam a bater às portas. Há também casos de gente que urina nas escadas”, conta.

Uma situação confirmada por Cláudia Paixão. “À medida que o bairro vai sendo gentrificado, vai-se assistindo a uma clara arrogância e a uma atitude colonial de muitos destes turistas estrangeiros. Conheço vários casos em que apenas alugam a estrangeiros”, diz a residente, lamentando a instalação de um clima de “permissividade total” para com quem faz do Bairro Alto um parque de diversões.

Mas também de “intimidação” dos que se opõem aos excessos, tanto dos turistas, como dos empresários da noite. “As pessoas têm medo, sobretudo os mais velhos”, assegura Cláudia. “Alguns moradores têm receio de fazer queixas”, confirma Fabiana Pavel, notando os interesses económicos em jogo. Os lucros tidos por muitos donos de bares de bebidas low-cost, refere, são tão elevados que “anulam o valor de qualquer multa que possa eventualmente ser aplicada”.

Lucros que estarão a permitir também a aquisição de diversos andares nos prédios, mantidos vazios ou para habitação dos empregados dos bares. “Assim, fica facilitado o aumento do ruído produzido e a expulsão dos moradores”, comenta a fundadora da nova associação, notando que o clima ali vivido está também a provocar dificuldades aos comerciantes “cumpridores”. É o caso de alguns restaurantes, que vêem a sua clientela habitual fugir, dada a degradação sentida.

Diagnóstico subscrito, mas apenas em parte, por Hilário Castro, presidente da Associação de Comerciantes do Bairro Alto (ACBA). “A degradação da vida nocturna tem que ver, sobretudo, com a falta de fiscalização e de aplicação das regras definidas para o funcionamento dos negócios. Cada vez mais, observa-se a troca de estabelecimentos cumpridores por aqueles em que vale tudo”, diz, antes de acrescentar reservas ao que considera ser um discurso contra uma actividade há muito estabelecida naquela zona.

“No dia em que se matar a noite do Bairro Alto, a cidade morre turisticamente”, avisa. E não se fica aqui. “Muitas dessas pessoas que agora se queixam de que o comércio tradicional do bairro está a desaparecer não o frequentam. Na verdade, se muitos dos negócios do Bairro Alto estivessem à espera dos moradores, já tinham morrido”, critica, considerando que o essencial é restabelecer o equilíbrio entre e vida nocturna e a vida comunitária (Publico, texto do jornalista Samuel Alemão)

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