“No final,
acabou por ser um murro dado num produtor que levou a BBC a suspender Jeremy
Clarkson. Por duas semanas, no mínimo. Não é garantido que seja de vez. O
apresentador do programa "Top Gear" tem uma audiência demasiado
grande e rende demasiado dinheiro à corporação para ela não tentar ver se há
maneira de o salvar. Não fossem essas substanciais vantagens e há muito que o
popular programa de automóveis teria desaparecido, com a quantidade de gente
que o seu principal apresentador já ofendeu ao longo dos anos. Uma breve lista
dos casos de Clarkson, só nos últimos anos, inclui garantir que os modelos da
Jaguar vendidos na Índia vêm com retrete, uma vez que toda a gente lá apanha
diarreia. Ou dizer que os mexicanos não têm atletas olímpicos porque toda a
gente nesse país que sabe nadar, correr ou saltar já se encontra do outro lado
da fronteira, nos Estados Unidos... (Clarkson também chamou aos mexicanos
"preguiçosos e flatulentos". O embaixador do país em Londres não se
iria queixar, sugeriu ele, pois estaria a ressonar quando o programa passasse,
às sete da tarde de domingo. Na verdade, o embaixador queixou-se e bem alto.) A
Argentina também se ofendeu quando Clarkson e o seu pessoal foram lá filmar um
episódio e circularam num carro com a matrícula H982 FKL, uma aparente alusão à
guerra entre esse país e a Grã-Bretanha por causa das Malvinas (ou Falkland) em
1982. Nessa altura, veteranos argentinos foram atrás da equipa para se vingar,
e não houve remédio senão fugir. Menos perigosos, apesar de tudo, são os dislates
cometidos pelo apresentador no Reino Unido, como defender o fuzilamento de
trabalhadores do sector público em greve ou dizer que os camionistas só pensam
no preço do gasóleo e em matar prostitutas. Passando de países para pessoas, houve aquela vez em que Clarkson chamou
"idiota escocês zarolho" ao então primeiro ministro Gordon Brown, o
qual perdeu a vista num olho a jogar râguebi quando era novo. Ou aquela outra
quando, falando de um carro que estava a experimentar, disse que a sua cauda
saía mais rapidamente do que a do cantor George Michael. Gay assumido, Michael
respondeu chamando-lhe "feio como um porco" e homofóbico, o que não o
deve ter maçado muito. Afinal, a popularidade de "Top Gear" assenta
em boa medida na personalidade extrovertida do seu apresentador, com tudo o que
ele tem de inconveniente. Jeremy Clarkson é o primeiro a estar consciente do
tipo de paradoxos que isso envolve para uma entidade respeitável como a BBC.
"O problema é que os executivos de televisão meteram na cabeça que se um
apresentador num programa é um rapaz heterossexual de cabelo louro e olhos
azuis, o outro tem de ser uma lésbica negra e muçulmana", explicou. Como
se vê, correção política não é para ele.
O
"egoísmo" dos suicida
A
suspensão agora decretada teve a ver com uma cena ocorrida ao fim de um dia de
trabalho, mas sobre a qual a BBC não deu pormenores. Ao que parece, Clarkson
ter-se-á enervado por não haver comida à mão e descarregou, literal e
fisicamente, num produtor. Já tinha sido censurado bastantes vezes, e da última
- quando foi apanhado e misturar um termo racista numa canção infantil (ele
negou que fosse essa a palavra, mas a BBC recorreu a analistas de som) -
tinham-no avisado que era a sua derradeira oportunidade. Ele queixava-se da
tensão que fazer um programa nessas condições implicava. "Top Gear",
que se diz ser o programa televisivo de não-ficção mais popular em todo o
mundo, existe desde 1977. Clarkson apresenta-o desde 1988, com uma breve
interrupção no início do presente milénio. Com seis milhões de espectadores no
Reino Unido, é visto numa centena de outros países e deu origem a vários
spin-offs e uma série de outros produtos. Embora o programa tenha inspirado
imitações em estações rivais, nenhuma o ultrapassa - o que por certo se deve a
Clarkson. Conforme notou alguém, não faz sentido pagar a alguém como ele para
praticar associação mental livre e a seguir castigá-lo exatamente por isso. Apesar
de suspenso, Jeremy Clarkson parece não ter perdido a boa disposição, como
demonstrou na quarta-feira em Londres, onde assistiu ao jogo entre o Chelsea e
o Paris Saint-Germain Ainda um outro exemplo, talvez o mais revoltante de
todos. Falando das pessoas que se suicidam atirando-se para a frente de um
comboio, Clarkson chamou-lhes "egoístas", disse que deixam os
condutores traumatizados para a vida (um argumento razoável) e atrasam a vida
aos passageiros. A sua recomendação: "O comboio não pode ser movido nem a
linha reaberta até todo o corpo da vítima ter sido recuperado. Às vezes, a
cabeça pode estar a meia milha de distância dos pés (...) Mudem o condutor,
apanhem os pedaços grandes daquilo que resta da vítima, ponham o comboio a
andar o mais rapidamente possível e deixem as raposas e as aves petiscar nas
partes mais pequenas e pegajosas que estão longe ou são difíceis de
encontrar" (texto do jornalista do Expresso, Luís M. Faria, com a devida
vénia). Leia também aqui