"A sociedade que vamos herdar da
“austeridade” do governo Passos-Portas.
Li algures que os nomes próprios que os
pais escolhem para os seus filhos têm uma relação com o ambiente económico que
se vive na época em que estes nascem.
Épocas de crescimento económico e de
grande desenvolvimento, de pleno emprego e de investimentos arrojados, que
permitem alimentar grandes esperanças para o futuro, suscitam o aparecimento de
Júlios Césares, de Alexandres Magnos e de nomes de ressonâncias históricas mais
nacionais mas sempre com uma predominância de nomes próprios duplos. Épocas de
recessão, de desemprego e de pobreza, de retracção e ansiedade, onde o futuro
se anuncia preocupante, suscitam o aparecimento de nomes singelos e discretos,
prudentes Joões, Marias e Josés.
Não sei se a actual crise está a ter este
reflexo onomástico, mas lembrei-me disto nos últimos dias ao ver a moderação
dos títulos de tantos comentários de balanço do ano que hoje acaba ou de prospectiva
do que amanhã começa, alguns deles intitulados simplesmente "2013" ou
"2014", como se nenhuma esperança autorizasse o arrojo de sonhar um
mundo para além da mera continuação do negro presente, como se não sobrasse
energia para nenhuma iniciativa além da mera constatação do tempo que passa ou
como se a simples menção da data (qualquer delas), com o que encerra de
inominável, fosse suficiente para nos saturar de significado, como “1984”.
A contenção destes títulos é outra forma
de dizer como é difícil, nestes tempos marcados por mentiras e desilusões,
erguer bandeiras que consigam despertar paixões e mobilizar vontades.
George Steiner fala num texto feliz de
como, durante a Revolução Francesa, todo o futuro parecia estar finalmente ali,
à mão de semear, de como todo o futuro parecia que ia acontecer “segunda-feira
de manhã”. Hoje, em Portugal, e em grande parte da mesma Europa da Revolução
Francesa, o futuro parece já ter acontecido todo há muitos anos e a sua simples
invocação parece um cruel exercício de cinismo, quando não de hipocrisia.
E, no entanto, devia ser fácil despertar
paixões e mobilizar vontades. Devia ser fácil reunir milhões de cidadãos em
torno de um programa de justiça social e de decência, de progresso económico e
de emprego, de qualificação e inovação, em vez da apagada e vil tristeza da
actualidade, da destruição do Estado para enriquecer os mais ricos e para
empobrecer os mais pobres. Pode aceitar-se a dificuldade em acreditar numa
alternativa, mas não a falta de vontade de procurar uma. Em 2014 voltaremos a
andar à procura do futuro.
2. Falar de mentiras e desilusões é falar
das mensagens de Natal de Passos Coelho e de António José Seguro.
Não vale a pena sublinhar a mentira dos
120.000 postos de trabalho inventados por Passos Coelho, mas vale a pena
retermo-nos na “recuperação” que se vai seguir à “austeridade”. É verdade que
há indicadores económicos que melhoraram e que alguns deles (exportações) são
de facto positivos. É verdade que a troika pode não voltar ao Terreiro do Paço
a partir de meados de 2014 e que Portugal talvez se possa financiar “nos
mercados”. Mas qual é a sociedade que vamos herdar da “austeridade” do governo
Passos-Portas? A sociedade que herdaremos será uma sociedade muito mais pobre do que antes do “resgate” financeiro (em 2013
teremos o mesmo PIB que tínhamos treze anos antes, em 2000) e muitíssimo mais
desigual, pois esta brutal perda de riqueza do país em geral foi acompanhada
pelo enriquecimento dos muitos ricos, o que significa que os pobres e a classe
média sofreram um empobrecimento superior à da média do país. Esta pobreza vai
marcar gerações, pois o peso da dívida (que é impagável e terá de ser
reestruturada) agravou-se por causa da “austeridade”. A sociedade que
herdaremos terá não só muitos mais pobres mas muitos mais pobres-trabalhadores,
devido à “compressão” dos custos do trabalho e à degradação das condições
laborais. Teremos trabalhadores mais mal pagos em nome da ”competitividade”
internacional. Teremos mais trabalhadores obrigados à docilidade pelo medo do
desemprego e da miséria. Teremos empresas menos inovadoras pois o medo não
incentiva a imaginação, não motiva nem impele ao risco. Teremos talvez menos
desempregados oficiais, porque os mais bem preparados emigrarão ainda mais e os
menos preparados deixarão de procurar emprego e aceitarão a miséria como
destino. Teremos menos e piores serviços públicos. Teremos funcionários
públicos humilhados e desmotivados. Teremos um sistema de investigação e
inovação descapitalizado e que terá perdido uma geração de altíssima
qualificação.Teremos um Estado mais pobre, com menos património, que terá sido
passado a bom preço para as mãos de empresas amigas. Teremos mais conflitos
sociais e mais violência. Teremos uma maior desconfiança das instituições e dos
políticos em geral. Teremos um estado social amputado e instituída a caridade
dispensada aos indigentes como forma de “acção social”. Passos Coelho, Paulo
Portas e Mota Soares continuarão a sorrir sem vergonha e será cada vez mais
difícil garantir às crianças que a indecência não compensa" (texto do
jornalista do Público, José Vitor Malheiros, com a devida vénia)