Segundo o jornalista do Expresso, Jorge Nascimento
Rodrigues, “os governantes responsáveis pela austeridade ignoram o que ensina a
história de crises anteriores, dizem Ken Rogoff e Carmen Reinhart num artigo publicado
esta semana pelo FMI. "Em nenhum lado o estado de negação é mais agudo do
que no caso da amnésia coletiva sobre as experiências anteriores de
desalavancagem nas economias desenvolvidas - especialmente, mas não
exclusivamente, antes da 2ª Guerra Mundial - que envolveram uma variedade de
reestruturações de dívida soberana e privada, bancarrotas, conversões de dívida
e repressão financeira", dizem Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart, dois
académicos especialistas em história das crises, num artigo publicado, esta
semana, nos Working Papers do Fundo Monetário Internacional (FMI). "A fase
atual do ciclo de negação é marcada por uma abordagem oficial baseada na
suposição de que o crescimento normal pode ser restaurado na base de uma
mistura de austeridade, resignação e crescimento", escrevem os dois
académicos em "Financial and Sovereign Debt Crises - Some Lessons Learned
and Those Forgotten". Rogoff e Reinhart publicaram, em 2009, com um título
irónico "Desta vez é diferente" (tradução pela Actual/Almedina,
2013), uma volumosa obra sobre "Oito Séculos de Loucura Financeira". Os
dois académicos foram criticados este ano por um outro trabalho, académico
publicado em 2010, em que pretendiam que se verificaria historicamente um
limiar na dívida pública (90% do PIB) a partir do qual a economia cairia em
recessão, uma conclusão cujos fundamentos empíricos se relevaram errados. Esse
pretenso limiar foi uma das justificações para a austeridade defendida na
Europa nomeadamente pelo Eurogrupo e pelo Banco Central Europeu a partir dessa
altura.
Em estado de negação
Rogoff e Reinhart sublinham, neste novo artigo, que o
estado de negação dos governantes e de outras autoridades das economias
desenvolvidas leva-os a defender que "não é preciso recorrer à caixa de
ferramentas usada pelas economias emergentes, que incluiu reestruturações de
dívida, inflação mais elevada, controlo de capitais e repressão financeira
significativa" em décadas recentes, "esquecendo" inclusive que
esses instrumentos foram "parte integrante da resolução de situações de
sobre-endividamento" nas próprias economias desenvolvidas em diversas
alturas no século XX. Baseados na história das crises desde 1900, os dois
autores apontam para cinco elementos de gestão das crises de
sobre-endividamento que foram usados em separado ou em alguma combinação:
crescimento económico; austeridade; reestruturação de dívida ou bancarrota;
inflação inesperada; e repressão financeira com alguma dose constante de
inflação. O crescimento económico como cura para o endividamento foi
"relativamente raro". As restantes ferramentas implicam, sem dúvida,
"uma dose de impopularidade ou de dificuldade prática", referem os
autores. Mas o que é grave é que os atuais governantes nos países desenvolvidos
tendem a "esquecer" as reestruturações de dívida e a repressão
financeira conjugada com alguma dose de inflação, argumentando que isso são
"coisas" para as economias emergentes. Na verdade, as reestruturações
de dívida foram frequentes nas economias desenvolvidas no período entre as duas
Guerras Mundiais e a repressão financeira com inflação foi usada extensivamente
após a 2ª Guerra Mundial.
Perdões de dívida
Rogoff e Reinhart recordam os perdões de dívida
concedidos pelos EUA em 1934 às economias desenvolvidas. A França e a
Inglaterra beneficiaram de reduções de dívida na ordem de 22 a 24% do PIB e a
Itália ficou perto dos 20%. No caso das dívidas de outras economias ao Reino
Unido, na mesma altura, nunca foram pagas ou entraram em situação de
bancarrota. Estas operações "desempenharam um papel substantivo na redução
do sobre-endividamento derivado quer da 1ª Guerra Mundial como da Grande Depressão".
Apesar do discurso "moral" atual contra as mexidas na dívida soberana
na Europa, dois acontecimentos recentes ilustram o seu papel: a reestruturação
da dívida grega na mão de credores privados - o que foi designado pelo acrónimo
em inglês PSI, para envolvimento do sector privado - concluída em abril de
2012, que ajudou a afastar o medo de saídas de membros do euro e a esfriar o
sobreaquecimento no mercado secundário da dívida dos periféricos; e a operação
de troca na Irlanda das notas promissórias no valor de 25 mil milhões de euros
com uma maturidade de 10 anos por dívida de muito longo prazo com uma
maturidade média de 34,5 anos e com juros mais baixos, o que permitiu ao
governo de Dublin aligeirar o fardo anual da dívida no pós-troika. "Dada a
magnitude da dívida atual e da probabilidade de um período sustentável de
crescimento económico médio abaixo do par, é duvidoso que a austeridade
orçamental seja suficiente, mesmo que combinada com repressão financeira. Pelo
contrário, a dimensão dos problemas sugere que reestruturações [de dívida]
serão necessárias, em particular para a periferia da Europa, muito para além do
que tem sido discutido em público, até ao momento", concluem os autores.
Repressão financeira
Quanto à repressão financeira depois da 2ª Guerra
Mundial, os dois académicos dizem que atuou, por exemplo, através de taxas de
juro reais negativas sobretudo nos EUA e no Reino Unido ou por via da inflação,
como nos casos de Itália e Austrália.O conceito de repressão financeira foi
desenvolvido pelos académicos John Gurley e E. Shaw nos anos 1960 e por Ronald
McKinnon duas décadas depois. Pretende caracterizar as políticas governamentais
tendentes a reduzir a remuneração obtida por aforradores e canalizar recursos
para os emissores de dívida (como os próprios Estados sobre-endividados); é uma
forma de redistribuição de capital. Incluem, os empréstimos diretos ao Estado
por parte de entidades domésticas (como os fundos de pensões), tetos explícitos
ou implícitos nas taxas de juro, regulamentação de movimentos de capitais e, em
geral, uma ligação estreita entre os governos e os bancos locais. Duas
propostas recentes podem ilustrar um mecanismo típico de repressão financeira
via impostos: a imposição de um imposto extraordinário progressivo sobre os
depósitos bancários que foi rejeitado pelo parlamento cipriota, no âmbito do
resgate daquele país pela troika em março; e a hipótese colocada, no
"Fiscal Monitor" de outubro, por técnicos do FMI de um imposto
extraordinário (de 10%) sobre a riqueza das famílias. Este tipo de medidas
necessita, em geral, de controlo de capitais para poder ter eficácia. Segundo
Rogoff e Reinhart, um contexto de políticas desse tipo permitiu às economias
desenvolvidas manter um rácio médio da dívida pública em relação ao PIB inferior
a 30% entre 1970 e 1980, contrastando com níveis acima de 80% logo após a 2ª
Guerra Mundial e em 2010 ou ligeiramente acima de 70% no início dos anos 1920 e
1930 e na última década do século XIX”