quarta-feira, setembro 23, 2009

Lembram-se? Quando Khadafy queria a Madeira...

Eu avivo memórias (o texto é meu) que ficam ocas muito rapidamente...
"Um dos episódios que causou mais estranheza, teve como protagonistas, o então ministro dos negócios estrangeiros argelino, Abdelaziz Bouteflika e o ainda líder da Líbia Mohamar Khadafi, ambos a reclamar a independência da Madeira alegadamente por se tratar de um território africano. No caso das Canárias, também envolvida na polémica, a posição foi mais longe porque a Organização dos Estados Africanos chegou a aprovar uma resolução nesse sentido. Trata-se de um episódio pouco conhecido, e hoje completamente branqueado da cronologia histórica da Madeira e da autonomia. Contudo, convém recordá-lo até para se perceber que as ideias separatistas não tiveram, ao contrário do que é sustentado por partidos de esquerda, apenas um cunho ideológico direitista.
No dia 24 de Fevereiro de 1978, a Assembleia da República discutiu um voto de protesto do Partido Socialista e outro do CDS, contra as declarações do presidente líbio Khadafi, que exigiu a independência do arquipélago da Madeira. No debate usaram da palavra Cunha Leal (PSD), Ribeiro e Castro (CDS), Rodolfo Crespo (PS) e Acácio Barreiros (UDP). O voto de protesto do PS e do CDS era do seguinte teor:
“A Assembleia da República tornou conhecimento com profunda surpresa das declarações de um chefe de Estado estrangeiro sobre a Região Autónoma da Madeira, que só um desconhecimento completo da realidade pode desculpar. A Assembleia da República eleva o seu mais vivo protesto contra as declarações desse chefe de Estado africano que representam uma ingerência flagrante nos assuntos internos portugueses e faz-se eco das reacções de repúdio da população da Região Autónoma da Madeira e de todo o povo português. A Assembleia da República reafirma a sua firme intenção de apoiar uma política de boas relações com os países africanos e com os países mediterrânicos em particular, mas não pode deixar de advertir solenemente que essa política tem de ser baseada no respeito mútuo e no princípio da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados”.
Durante a discussão o deputado do CDS, Ribeiro e Castro propôs à bancada do Partido Socialista, uma nova redacção para o primeiro parágrafo do referido voto: “Nós ponderámos melhor o texto do voto de protesto e cremos que no primeiro parágrafo há uma ideia correcta que é traduzida de uma forma menos adequada e, portanto, gostaríamos de propor que o primeiro parágrafo, se o Partido Socialista estivesse de acordo, ficasse com esta redacção: “A Assembleia da República tomou conhecimento com profunda surpresa das declarações de um chefe de Estado estrangeiro sobre a Região Autónoma da Madeira, que revelam um profundo e lamentável desconhecimento da realidade portuguesa”. O Partido Socialista, pelo deputado Rodolfo Crespo, aceitou a alteração. Durante esta discussão, o deputado do Partido Social Democrata, Cunha Leal anunciou a apresentação de um outro voto, no mesmo sentido, admitindo que o texto apresentando conjuntamente pelo PS e CDS “não toca o cerne da questão”. Alda Nogueira, do PCP, depois de admitir que “são conhecidas as posições do Partido Comunista Português no que respeita a concepções ou actividades que visam afectar a unidade e a integridade territorial de Portugal” e recordar o combate que os comunistas desenvolvem contra o separatismo na Madeira e nos Açores, disse: “No que se refere às declarações proferidas pelo Chefe de Estado da Líbia numa conferência internacional - a confirmarem-se tais declarações, no que respeita a território insular português -, o Partido Comunista Português não pode deixar de as considerar uma ingerência interna e como tal não pode deixar de merecer o vivo protesto de todos os patriotas portugueses. Quanto às referidas declarações ainda admitimos que se trate ou de deficientes informações ou de informações deliberadamente falseadas por círculos internacionais reaccionários interessados em criar dificuldades ao regime democrático português”. Contudo, e apesar de todas as reservas, o PCP anunciou o apoio ao voto de protesto. Acácio Barreiros, deputado da UDP, foi outro dos oradores, tendo reafirmado posições assumidas já pelos órgãos do seu partido, nomeadamente “considerar como uma ingerência inadmissível e um erro político de extrema gravidade a defesa pelo coronel Kadhaffi da independência da Madeira”. E acentuou: “A UDP, que sempre se bateu não só por uma efectiva autonomia das regiões autónomas, mas também, simultaneamente, contra os pretensos movimentos de libertação que, como sempre denunciámos, não passam de pequenos punhados de fascistas a soldo do imperialismo norte-americano, não podia deixar de repudiar com toda a firmeza esta ingerência do Chefe de Estado da Líbia”.
Este voto de protesto do PS e do CDS foi aprovado por unanimidade.
A mesa da Assembleia da República procedeu seguidamente à leitura de um voto de protesto do PSD, sobre o mesmo tema, do seguinte teor:
“Considerando que, na abertura da reunião da Organização da Unidade Africana (OUA), o Presidente da Líbia, coronel Kadhaffi, se permitiu fazer declarações sobre a independência dos arquipélagos dos Açores e da Madeira que não podem passar sem o repúdio, firme e coerente, que, por parte do Governo Central, já vai tardando; Considerando que a Assembleia da República tem, por diversas vezes, condenado o separatismo; Considerando que, por maioria de razão, lhe cumpre condenar também todas as tentativas de neocolonialismo que, sob a forma, mais ou menos disfarçada, de um apoio às lutas libertadoras dos povos, procuram, na realidade, apenas tutelá-los: A Assembleia da República protesta contra as referidas afirmações do Presidente da Líbia, que, assim, denuncia pela falsidade, oportunismo e pelo que nelas se contém de insultuoso para o portuguesismo nunca desmentido das gentes daquelas ilhas atlânticas, afirmações essas que, aliás, se inserem numa linha de actuações em que o separatismo insular é fomentado e usado pela extrema-direita e pela extrema-esquerda”.
O deputado Cunha Leal justificou a iniciativa do seu partido: “Contém ele em si precisamente as premissas exactas, correctas e isentas em que assenta o mesmo voto de protesto, voto este que procurou situar-se acima de qualquer partidarismo ou sectarismo que pudesse levar a soluções que não fossem a da sua aprovação, tal como ficou ínsito nas declarações de todos quantos se pronunciaram sobre o voto apresentado conjuntamente pelo PS e pelo CDS. Acontece, porém, que nesta bancada se entende que se tornava efectivamente necessário marcar com maior vigor a nossa posição, pois que, ao contrário do que aconteceu com o Governo Espanhol, até ontem o Governo Português não tinha ainda formulado a resposta pronta e enérgica que se impunha perante um atropelo desta natureza”. O parlamentar social-democrata lembrou que “houve alguém que procurou imiscuir-se no interesse nacional, houve alguém que procurou decidir sobre o nosso próprio destino como país independente e livre, houve alguém, e não importa se a cor dele é azul, encarnada ou amarela, que procurou marear os nossos próprios destinos, como se efectivamente não tivéssemos um passado que responde por nós, um passado que se não pode confundir corri quarenta e oito anos de opressão e ditadura que procuramos a todo o custo, e por forma viril e correcta, afastar como uma pedra negra do nosso destino histórico de dar práticas ao mundo”.
Cunha Leal recordou que o caso tinha uma gravidade acrescida e que resulta de outros factores que parecem ter sido ignorados pelo voto e respectiva discussão anterior: “Nesse mesmo discurso em que se propõe a independência do arquipélago da Madeira diz-se também que é preciso banir da África por completo a língua portuguesa, porque isso é ainda uma forma de expressão do colonialismo que nós ali pretendemos, por essa forma, exercer. Não sei a que língua se pretende recorrer, se a uma língua eslava, se a uma língua de cariz espanhol ou se a qualquer outra língua. Não sei, até porque, por curiosidade, acontece que o coronel Kadhafy no seu discurso - insisto - fala em que é preciso banir de todo o continente africano as línguas portuguesa, francesa e inglesa e não fala em banir a língua espanhola. Parece, pois, que essa já agrada aos ouvidos fáceis do coronel líbio”. O deputado Ribeiro e Castro, a propósito da reacção tomada pelo Governo Português, recordou que “ela não pode comparar-se nem pode considerar-se em pé de igualdade com a que foi e devia ser tomada pelo Governo Espanhol, pois este reagiu contra uma deliberação tomada pela Organização de Unidade Africana, enquanto no tocante a Portugal se tratou não de uma deliberação desse organismo internacional, mas de uma intervenção de um chefe de Estado no decurso da Assembleia”.
Ou seja, para o deputado do CDS, “trata-se, relativamente à Espanha e a Portugal, de factos com uma dignidade e uma natureza diferentes e foi talvez daí que surgiu a diferença de tempo e de reacções”. Sobre o voto manifestou a sua concordância com o texto apresentado, salvo uma expressão - "oportunismo" - que não deveria ser utilizada na tomada de posição de um órgão de soberania português referindo-se a um estado estrangeiro em concreto. Com uma ressalva: “No nosso entender, não se trata de oportunismo no caso do Sr. Coronel Kadhafy, trata-se, sim, de um rumo político conscientemente seguido e prosseguido, errado e ofensivo para o povo português”.
Depois de uma prolongada discussão em torno da reacção do governo português e da inclusão de algumas expressões ou palavras no texto do voto, este só seria votado posteriormente
[2], sem que antes não tivesse deixado de ter sido ouvida na Assembleia da República, uma curiosa revelação feita pelo deputado do Partido Socialista, Rodolfo Crespo: ”Foi com profunda surpresa e mesmo com certa estupefacção que a opinião pública portuguesa e esta Câmara tomaram conhecimento das declarações de um chefe de Estado estrangeiro sobre a Região Autónoma da Madeira. Com efeito, só o profundo desconhecimento da realidade portuguesa pode ter levado esse chefe de Estado a fazer determinadas afirmações. E eu queria aqui dizer que recentemente, ao receber uma delegação desse país, me foi perguntado qual a percentagem de negros e de brancos existentes nos Açores e na Madeira, tendo eu respondido a essa delegação líbia que eles conheciam muito pouco a nossa história, já que desconheciam que os arquipélagos dos Açores e da Madeira eram despovoados quando os navegadores portugueses ali chegaram e que os portugueses que neles habitam são tão portugueses como os Deputados que se encontram nesta Câmara - e aqui temos representantes dos Açores e da Madeira - e como todos os habitantes deste país. Aparentemente, essa delegação não informou o seu chefe de Estado. Estas declarações de um chefe de Estado estrangeiro são tanto mais graves e mais lamentáveis quanto esse país se situa numa área com a qual Portugal, o Governo Português e esta Assembleia têm sempre demonstrado querer ter relações de abertura, de cooperação e de amizade. Esta ingerência nos assuntos internos de Portugal tem de ser denunciada e, nós devemos advertir solenemente que, se queremos ter relações de amizade e de cooperação com os países de todo o mundo, nomeadamente com os países da área mediterrânica, não podemos admitir que esses países façam ingerências na nossa política interna e que do mesmo modo, se querem ter boas relações connosco, têm de basear no respeito mútuo e no princípio da não ingerência nos assuntos internos do nosso país, tal como nos não ingerimos nos assuntos internos desses Estados”.
O voto de protesto do PSD seria rejeitado, com os votos contra do PS, do PCP e do Deputado independente Aires Rodrigues, obtendo os votos a favor do PSD e as abstenções do CDS e da Deputada independente Carmelinda Pereira. O PS justificou a sua oposição ao voto por achar “redundante e inútil, na medida em que já foi aprovado por unanimidade um voto de protesto contra as declarações do chefe de Estado da Líbia, e pelo facto de os considerandos, constituírem um ataque ao Governo”. Alda Nogueira do PCP repetiu a argumentação anterior mas acusou o PSD de se servir de um voto “para confundir e obscurecer o problema do separatismo, para cuja actividade tem tido sempre atitudes de brandura e tolerância, atitudes estas que não podem deixar de constituir um elemento encorajaste e estimulante desse mesmo separatismo”.

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