sábado, maio 02, 2020

Contágio deixa especialistas em alerta

Número de internamentos e doentes em cuidados intensivos em queda. Rastrear contactos deve ser aposta. Oindicador que mais atenção mereceu nos dois últimos meses é o que agora deixa os especialistas mais inquietos. O número médio de pessoas que alguém infetado contagia num determinado período de tempo (Rt) subiu e está perto de 1, ou seja, um caso positivo dá origem a outro, e isso é suficiente para que o número de infetados continue a aumentar. Só que os peritos mudaram o foco para outros indicadores, como a descida dos internamentos e do número de doentes em cuidados intensivos, para concluir que há margem para entreabrir as portas e dar resposta ao aumento de casos que será inevitável nas próximas semanas.
“Cada um destes indicadores representa uma peça do puzzle. É preciso olhar para a dinâmica da transmissão do vírus e para o stresse que está a ser colocado no sistema de saúde para perceber a realidade”, defende André Peralta-Santos, investigador e membro da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública. “Os internamentos e os cuidados intensivos dão alguma esperança de termos recuperado margem de manobra, mas não fico descansado com um Rt próximo de 1 perante o retomar de atividade e com uma grande parte da população suscetível ao vírus.”

Hospitalizações e internamentos em cuidados intensivos são agora os mais baixos desde o início do mês
O receio é comum a outros especialistas. “São valores que não me tranquilizam. Mas tudo depende do impacto das medidas que vão ser postas em prática e que são relativamente leves. Não é um regresso à escola ou o fim do teletrabalho. Servirão para dar uma ideia do seu efeito”, defende Carla Nunes, diretora da Escola Nacional de Saúde Pública.
Os dados divulgados diariamente pela Direção-Geral da Saúde (DGS) mostram que o número de hospitalizações e de internamentos em cuidados intensivos foi, esta semana, o mais baixo desde o início do mês. E tanto o aumento dos óbitos como dos novos casos tem vindo a descer. São esses os indicadores que António Diniz, pneumologista e membro do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, destaca como positivos. “É verdade que é possível ter um Rt de 1 sem aumentar os internamentos em cuidados intensivos ou os óbitos se não forem infeções graves. E sabemos que a subida do contágio em Lisboa se deveu a casos em hostels, com pessoas jovens. Mas o Rt não deixa de ser preo­cupante, e tudo isto precisa de ser estudado em detalhe.”
O cálculo do Rt tem sido feito em Portugal pelo Instituto Dr. Ricardo Jorge (INSA), e só esta semana foram divulgados dados — atualizados apenas até 17 de abril. O indicador reflete a transmissão do vírus ocorrida nos dias anteriores e não nesse próprio dia, servindo para medir o impacto da aplicação de medidas de contenção. Em Portugal, o Rt oscilou entre 2,49 no final de fevereiro e 0,94 no início de abril, tendo subido ligeiramente desde então e rondando agora 1,04. As maiores quebras ocorreram com o fecho das escolas e com o início do estado de emergência.
“Temos de assumir que ter de dar um passo atrás é uma possibilidade”, diz André Peralta-Santos
Na Alemanha, onde o Rt subiu esta semana para 1, a chanceler Angela Merkel foi muito clara a balizar os limites até onde o contágio pode aumentar após o levantamento das medidas: com 1,1, a capacidade de resposta do sistema de saúde alemão é ultrapassada em outubro, com 1,2 o limite chega em julho e com 1,3 é já em junho. Em Portugal, os especialistas em epidemiologia e saúde pública dizem ser difícil apontar um “número mágico” deste indicador como alerta para a necessidade de recuo. O único valor indicado esta semana como travão, enquanto limite da capacidade do SNS, são os 4 mil internamentos de doentes com covid.
“O pior cenário era voltar ao Rt inicial, mas acho que isso não vai acontecer, porque o comportamento social não é o mesmo”, aponta André Peralta-Santos. “Depois da alteração das medidas, vamos precisar de cerca de uma semana e meia para ver a subida do Rt e duas semanas e meia para ter aumento nos internamentos. O perigo de uma saída demasiado rápida é a dinâmica da epidemia crescer tanto que cause stresse no SNS e nos obrigue a recuar. Mas temos de assumir que ter de dar um passo atrás é uma possibilidade”, adianta o médico de saúde pública.
RASTREAR CONTACTOS
A prioridade, dizem os especialistas, é monitorizar em detalhe o que se vai passar a partir da próxima segunda-feira, e uma das formas de o fazer, mesmo que para já de forma manual e não digital, é rastrear os contactos que alguém infetado teve. “É fundamental. A Alemanha está a recrutar cinco pessoas para rastrear contactos por cada 20 mil habitantes. Com o desconfinamento vamos ter aumento de contactos, e é preciso um esforço adicional para rastrear as pessoas e colocá-las em isolamento profilático”, defende Peralta-Santos. Segundo um estudo publicado esta semana pela London School of Hygiene & Tropical Medicine (LSHTM), combinar isolamento e rastreio de contactos diminui em 61% a transmissão do vírus (Expresso, texto da jornalista  RAQUEL ALBUQUERQUE)

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